“Esta fonte é para uso de todos os sedentos. Toma a tua parte. Vem a estas páginas e não entraves seu uso aos que têm sede.” – Cora Coralina.
Por Vitor Guedes
Foto:@dizerpoesia
“A cidade inteira diz que a profecia cumpriu-se: dizem que um homem esteve nesta casa, no teu quarto, enquanto Anfitrião combatia. A cidade está orgulhosa de seu general e trás ramos de louros para sua frente. Mas todos os homens, as mulheres, os velhos, as crianças; Todos estão enfurecidos contra Alcmena. Dizem que ela te traiu enquanto libertavas Tebas...” Apesar do tom dramático desse trecho proferido pela escrava Tessala, no ato final, a peça se trata da comédia Um Deus dormiu lá em casa, de Guilherme Figueiredo, cujo texto é uma adaptação da comedia grega Anfitrião, de Plauto. A história narra a aventura do general Anfitrião: Ateu - rejeita vigorosamente os rituais e sacrifícios aos Deuses, é convocado para a guerra por Creonte, e, posteriormente, toma conhecimento da profecia de que um homem dormiria em sua casa na primeira noite que fosse à guerra. Tomado por desconfianças – sobretudo em relação a Creonte, Anfitrião e o escravo Sósia fogem ao combate e retornam à casa do general, porém disfarçados de Deuses – Júpiter e Mercúrio, respectivamente, para vigiarem Alcmena, a esposa de Anfitrião, que, nos momentos finais da narrativa, lhe dá um ultimato: “Tens que escolher: entre ser um covarde ou um marido enganado”. O texto original é anterior ao ano de 700 a.C, e a adaptação de Guilherme Figueiredo é de 1949. Na UFF, a peça ganhou novos contornos: a leitura dramatizada ocorreu em setembro de 2018, e a adaptação foi do professor Beethoven Alvarez: “tem um certo distanciamento temporal, que precisa ser enfatizado, para que as pessoas entendam que estamos falando de outro mundo – temporal e geográfico, e eu preciso compreender isso. É importante essa percepção na minha condição de sujeito histórico do agora. Mas há elementos na leitura que dá para atualizar, especialmente se for um texto cômico. Você consegue atualizar as piadas, por exemplo: em ‘Um Deus dormiu lá em casa’, no inicio, o personagem fala que ele só confia na estratégia, do grego “strateegia”, uma clara alusão ao filme “Tropa de Elite”, e o público na hora compreendeu, entendeu e riu. Isso não estava originalmente no texto do Guilherme Figueiredo e faz parte desse processo de adaptação”.
Ao tratar especificamente da questão da leitura dramatizada dentro do ambiente da UFF, o professor explica: “Falando de uma perspectiva mais particular, eu não vejo certa institucionalização das práticas teatrais na UFF. A universidade tem um caminho grande a percorrer e tem toda a capacidade de intuir um curso de teatro. Não temos a ‘faculdade de teatro da UFF’, como há em outras instituições. Não temos iniciativas que viriam de um instituto, de uma faculdade propriamente de teatro, que incentivaria a prática da leitura dramatizada. Então acaba que as leituras dramatizadas se tornam projetos particulares, principalmente de professores”. Ademais, Beethoven ressalta o caráter pouco dispendioso da atividade, fazendo com que sua prática se torne mais acessível: “Dar vida, dar voz, dar corpo a um texto de teatro, que talvez, fora desse ambiente da leitura dramatizada na universidade, os alunos não pudessem ter acesso. O teatro, no Brasil, ainda não é um teatro popular, é uma atividade ainda muito elitista, infelizmente. Portanto, acaba que, para os alunos, a possibilidade de assistir, ainda que seja uma leitura dramatizada – feita por professores e alunos da faculdade, é uma oportunidade ímpar para obter acesso a conteúdos, aos textos de dramaturgos que são importantes”.
“A arte existe porque a vida não basta”, frase de Ferreira Gullar, e citada por Nicolas Tadashi, formado em Letras Português – Literatura pela Universidade Federal Fluminense (UFF) desde 2018. Nicolas conta um pouco de sua experiência da prática de leitura dramatizada na universidade, “Não é uma peça teatral. Não tem os recursos que uma peça tem. Entretanto, ela chama uma atenção muito forte para o texto. É uma experiência de leitura muito forte, principalmente dentro do espaço teórico e analítico da Academia”. Ao abordar o âmbito dos textos teatrais da antiguidade clássica e sua atemporalidade, Nicolas cita as suas constantes releituras, dentre elas Ariano Suassuna com O Auto da Compadecida que é uma releitura de uma comédia da antiguidade clássica, além dos textos bíblicos: “Luis Alberto de Abreu, um dramaturgo muito bom, ele relê o livro de Jó, da Bíblia. Você vai atualizando esses textos e eles vão servindo como fontes o tempo todo”. Também é citada a leitura como forma de aprendizado, Nicolas, que é professor, descreve a experiência em sala de aula: “Pegar um poema, por exemplo: o Drummond falando sobre uma flor nascendo no asfalto. Isso pra nós, que damos aula em escola, é sempre curioso apresentar esses textos literários, pois a primeira intenção dos alunos é olhar aquilo com olhos de realidade: ‘Mas como? Uma flor não nasce do asfalto, não tem como isso acontecer! ’ Aí tem de se mostrar que é outra linguagem, são outras realidades. Então, desde as histórias mais realistas até as menos, elas não deixam de ter esse lugar outro: um lugar da fruição, da imaginação. E que não pode ser uma lógica, uma fé, porque é um lugar que habitamos momentaneamente” conclui.
Ainda tratando do tema da atemporalidade presente em alguns textos, tanto Nicolas quanto o professor Beethoven destacam a obra de Nelson Rodrigues nesse aspecto. Ambos participaram da leitura dramatizada do texto “O casamento”, no Instituto de Letras da UFF “Nelson Rodrigues é um texto que sempre será importante, sempre será necessário” conclui o professor, e Nicolas reforça: “o Nelson é um autor muito pertencente ao seu tempo, mas ao mesmo tempo é um autor que trabalha de maneira muito significativa com questões atemporais: as vaidades, as traições, os limites humanos” Ele complementa descrevendo que as condições humanas retratadas são independentes à época, e que os textos de Nelson Rodrigues possuem a capacidade de atualizar-se conforme o tempo passa.
“Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”, a citação a Ítalo Calvino e seu livro “Por que ler os clássicos?” é veementemente afirmada por Luan Siqueira, também formado em Letras na habilitação Português – Literatura pela Universidade Federal Fluminense (UFF), no ano de 2020. Luan detalha que já havia feito um curso de teatro antes de ingressar na universidade, e que vislumbrou no curso de Letras a oportunidade de trabalhar com áreas relacionadas ao teatro “Ler teatro, assistir teatro”, ele descreve. Definindo a pluralidade artística que envolve a atividade de leitura dramatizada, ele ressalta a força do caráter textual: “Tudo passa pela palavra, e numa faculdade de Letras ela é essencialmente trabalhada. Quando fazemos uma leitura dramatizada, o que vem em primeiro lugar é a palavra. Antes de tudo, a palavra. E apesar de envolver o teatro, quem faz a leitura dramatizada tem que se preocupar com o que é lido. Não tanto com a interpretação corporal, e sim mais com a interpretação da voz: a entonação; a inflexão, que acabam configurando a interpretação daquelas palavras. Seja lendo um poema, um trecho de um romance, ou uma peça. Por isso, na leitura dramatizada, o ator ou a pessoa que faz a leitura não precisa decorar o texto, pois a finalidade não é a encenação, mas trazer aquela leitura – que poderia ser silenciosa – para um formato oralizado. Tem que haver a interpretação na voz, para dar uma entonação àqueles personagens, isso quando falamos de teatro”.
Luan possui uma página no Instagram, o Dizer Poesia, na qual realiza leituras dramatizadas “Eu costumo dizer que aquele material não é meu, eu tomo emprestado dos muitos autores que li a vida toda”. Ele conta a origem do projeto, que surgiu na época de seu intercâmbio na Universidade do Porto, em Portugal, e que a saudade do Brasil e a sensação de solidão o motivaram a ler de forma considerável “Foi o período que mais li, lia tudo: prosa, romance, crítica literária. E me veio essa ideia, também muito inspirado por Maria Bethânia e Arnaldo Antunes, que nunca deixaram de realizar leituras de poesia em seus shows. Também por outros poetas que, hoje em dia, aventuram-se em fazer performances nas redes sociais”. Luan enfatiza uma leitura dramatizada que realizou com Nicolas, uma compilação de textos, cuja seleção e leitura são baseadas na peça “O livro de Jó” de Luis Alberto de Abreu, em que ambos interpretam Jó, realizando um jogo de duplo: há diálogos, debates, e reflexões entre os dois, ainda que, em tese, seja uma pessoa só. Nessa leitura há referências a diversos textos, poemas e canções. Ao final, eles destacam os poemas de Adélia Prado, a canção de Chico Buarque “Sobre todas as coisas” e duas citações literárias: “Deus, mesmo, se vier, que venha armado” de “Grande sertão: veredas” de Guimarães Rosa; e “Silêncio. Se um dia Deus vier à terra haverá silêncio grande. O silêncio é tal que nem o pensamento pensa” de “A hora da estrela” de Clarice Lispector.
A pandemia cessou as sessões de leitura dramatizada na UFF, conforme o professor Beethoven explica: “Durante a pandemia nós paramos com a atividade. Não pensei em programar nada pra agora, por que é preciso um processo de como reavaliar para fazer durante a pandemia. Mas no futuro, quem sabe”. Nicolas analisa: “Acaba ficando comprometido, pois há tantas variantes: a conexão que pode cair, a qualidade – às vezes não ouvimos a pessoa que fala, mas ao mesmo tempo acho que vale a pena ser tentado, fazer uma leitura dramatizada nessas condições. Eu e o Luan fizemos uma live pelo Instagram dele, lemos uma antologia de textos que apresentamos na UFF uns anos atrás, e quisemos fazer nessas condições. Foi uma experiência curiosa, não temos o contato com o outro ali, víamos as pessoas ingressando na live, reagindo, comentando. É interessante como experiência, eu não renegaria, desde que a gente saiba que será outra forma de fazer isso. Quem sabe não se torna uma outra linguagem, a leitura dramatizada aliada a essa linguagem virtual”. Nesse contexto, Luan descreve o Dizer Poesia como um meio para compartilhar poesia e explica: “o perfil nasceu dessa necessidade, de tornar a poesia algo acessível, de democratizar o objeto literário”, ele prossegue: “Com a leitura dramatizada, acredito que as pessoas conseguem entender melhor a mensagem, porque muito da interpretação vem da leitura oral daquele texto, e é importante compartilhar isso na rede social”, conclui.
Links:
Leitura dramatizada “Um Deus dormiu lá em casa”: https://www.youtube.com/watch?v=o7nmhlCY8H4
“Dizer Poesia”: https://www.instagram.com/dizerpoesia/
Adorei a matéria, Vitor! Todos os relatos são muito interessantes e tenho certeza de que você formulou perguntas certeiras. Para mim, é um prazer enorme ver essa pauta sendo trabalhada no blog, ainda mais considerando os entrevistados. Muito interessante o olhar trazido por eles.
ResponderExcluirMinha única crítica é muito parecida com a que fiz na sua última matéria: ainda sinto falta do seu encaminhamento, como repórter, para as questões debatidas. Apesar de estarem maravilhosas, sigo com a sensação de que as o espaço para as as entrevistas está grande e gostaria de um direcionamento para que fossem citadas. Há pessoas, por exemplo, que desconhecem a existência do projeto. Acho que seria interessante que você o apresentasse e discorresse sobre ele antes de passar para a fala de seus entrevistados. No mais, eu adorei e gosto muito de como você procura sempre trazer arte para suas pautas!
- Luiza Martins