Arranjo temporário

A intensificação da dupla jornada do trabalho feminino na pandemia

Por Giovana Rodrigues


Foto: Google

Geisa Rodrigues é professora vinculada ao departamento de comunicação social da UFF - Universidade Federal Fluminense. Dedicar-se à pesquisas faz parte de seu dia a dia. Por ser uma atividade “um pouco mais solitária” e se ter um espaço acadêmico precário, o que dificulta a realização de diversos afazeres, o trabalho domiciliar sempre foi comum para Geisa. No ano de 2020, isso não foi diferente. Com a pandemia de COVID-19 no país, algumas tarefas, que já eram feitas em casa, continuaram assim. Por ora, pode até parecer um contexto favorável para ela, mas, na verdade, está bem longe de ser. 

  O problema é que todos os compromissos tiveram que ser adaptados e encaixados nesse novo cenário, e ainda conciliados com as tarefas domésticas, principalmente por ela ser mãe. Agora, com uma rotina muito mais pesada, composta por múltiplas obrigações, e ainda somada aos problemas psicológicos, a professora encontra desafios para se organizar, e diz que está tudo “fora de prumo”. “Mesmo o que eu já fazia em casa, eu já não consigo fazer como eu fazia antes”. 

  Em decorrência do isolamento social, a maioria das atividades do departamento de comunicação tiveram que parar. Mesmo assim, as questões acadêmicas ainda tomam bastante tempo do dia a dia da professora, em especial, por conta das reuniões realizadas remotamente para discutir questões burocráticas. “A gente vem tentando se reunir para encontrar algum tipo de solução, mas está bem complicado”. As pesquisas e projetos de extensão também continuam fazendo parte de sua rotina, mas com algumas limitações que o próprio contexto traz. “A dinâmica da troca, que era muito importante, ela não está mais acontecendo”. 

  Um de seus projetos é o Dissemina: perspectivas afrocentradas de raça e gênero na comunicação e na cultura. Geisa conta que tem sido um pouco complicado “tocar a parte coletiva do projeto” devido à dificuldade que alguns alunos têm encontrado para conseguir participar. Com a pandemia, grande parte dos estudantes enfrentam inúmeros empecilhos. Entre eles, a professora destaca a questão do aumento das tarefas domésticas e o desafio de conciliá-las com os compromissos acadêmicos, e, em alguns casos, até com o estágio remoto. “Os alunos que mais me ajudavam estão em casa ajudando os pais. Alguns tomando conta de irmãos, outros tomando conta de familiares mais velhos que ficam em casa”, relata sem conseguir esconder a preocupação. 

  Apesar de enfrentar desafios mais ‘amenos’ por possuir certos privilégios que grande parte de seus alunos não têm, as dificuldades não deixam de também existir para a professora. A dupla jornada acadêmica e doméstica tem sido um grande  motivo para isso. Além das obrigações como professora e pesquisadora, Geisa tem uma filha de 12 anos que cria praticamente sozinha. “Eu digo praticamente porque ela tem um pai, mas ela mora comigo e está ficando comigo direto”. Mesmo que não seja uma criança tão pequena, “demanda alguns tipos de cuidados, de atenção. Eu tenho que cuidar da casa, fazer comida”.

  Antes da quarentena, sua filha tinha aulas e Geisa contava com a ajuda de uma pessoa que trabalha para ela, mas que precisou suspender no contexto atual. Ela “não vinha todos os dias, mas dava uma força, sobretudo, por eu ter uma criança aqui e por eu dar aulas à noite”. Agora, a professora não tem mais esse auxílio e a filha fica o dia inteiro em casa. Somado a isso, ainda tem a questão das compras, que também se tornou bem mais trabalhosa nesse cenário de pandemia, já que exige a realização de um processo metódico para que os alimentos sejam higienizados adequadamente. “Nas terças-feiras, eu recebo um hortifruti de orgânicos (...) é o dia inteiro higienizando”. Além disso, eventualmente, ela também faz compras no mercado. “Ou eu peço, ou eu desço num mercado que tem aqui perto de casa”. 

  Ainda que certas tarefas domésticas sempre tenham feito parte do dia a dia de Geisa, a pandemia as intensificou. O aumento dessas obrigações atrapalham a organização de seus compromissos acadêmicos, assim como os compromissos acadêmicos também dificultam o cumprimento das obrigações domiciliares. A vida de Geisa virou um círculo vicioso em que é extremamente difícil conciliar a dupla jornada como mãe e mulher inserida na academia, e uma coisa impede que a outra seja realizada de forma plena. “Eu tentei estipular um dia para cozinhar e deixar as coisas prontas para o resto da semana (...) não consegui (...) a gente tem tido muitas reuniões e isso acaba atrapalhando um pouco o processo”, conta revelando sua dificuldade em se adequar ao novo contexto. 

  Mas essas não são as únicas entraves da sua rotina. “Cuidar da saúde física e mental estando preso dentro de casa” também tem sido um grande desafio para a professora. Nos primeiros dois meses, ficou um tanto  deprimida. Sentia angústia, medo e uma sensação de que todo mundo ia morrer. Ficava nervosa com cada notícia do governo. “Quem é da área de educação mata um leão por dia”. No começo, até cogitou em tomar medicação, mas com ajuda de amigos, em especial uma amiga  que é médica, exercícios de respiração e o uso de óleos essenciais, a depressão inicial pode ser rompida. Para manter a saúde mental, ela também segue fazendo terapia online, voltou a realizar exercícios pelo menos duas vezes na semana e precisou entender “até onde pode interferir e até onde não”, sem falar na redução do contato com certos tipos de notícias, dependendo das fontes. “Isso me ajudou também”. 

  Os problemas psicológicos só dificultam ainda mais a tentativa de conciliar os deveres domésticos e acadêmicos. Geisa demonstra reconhecer a importância de amenizá-los para sobreviver e se organizar em um cenário como o que estamos vivendo. “Estou tentando manter a minha sanidade mental, até porque eu crio uma pré-adolescente. Então, tem que ter uma estrutura mínima psicológica e física também”. Apesar de estar conseguindo controlar melhor a questão do bem-estar psicológico, ainda tem sido bem difícil se adequar a uma rotina no isolamento social. “O desafio de me encontrar com uma rotina que não me faça mal eu ainda não consegui ultrapassar”. O contexto até trouxe algumas coisas boas, mas para Geisa, esse ‘novo estilo de vida’ não é vida, mas sim um “arranjo que é temporário”. 

Comentários