Amor pré-pandemia no Gragoatá

A última carta de um namoro interracial
Por Anônimo

Foto: Google


24 de dezembro de 2019. Provavelmente a última vez em que nos olhamos da maneira em que estávamos acostumados. Hoje, três dias depois, foi quando finalmente consegui guardar isso tudo. Não antes de externar essas palavras. Após elas, não há mais nada a ser dito. Essa carta nunca será entregue. É a última de muitas escritas por nós dois após mais de 6 anos e, com certeza, a mais importante.

Não é sobre nós, sobre detalhes ou palavras mal colocadas, é algo bem maior e que você nunca será capaz de entender.

É sobre gente como eu. E como você. São opostos que, apesar de terem vivido anos felizes e realmente ter havido amor, há coisas que afetavam o nosso relacionamento e a mim diretamente, mas eu não conseguia enxergar. E após conseguir realmente reconhecer quem eu sou, tudo fez sentido.

Coisas essas que me afetaram mesmo antes de nascer. Filho de uma mulher como eu, suburbana e um pai que é gente como você. Pai esse, que você sabe que é um ser maravilhoso, mas por algum motivo, a família dele nunca fez questão de nos aceitar, nos incluir. Mesmo minha mãe sendo uma mulher bem-sucedida, de muita classe e educação ímpar. Mesmo eu sendo uma criança exemplar na escola, educado, etc. como sempre fui cobrado para tal. 
Por que será que não fomos aceitos? 

Desde muito cedo, aprendi que precisava fazer mais do que os outros para ser reconhecido. Não era raro eu ser o único preto da turma. E, por alguma razão, sempre era visto como diferente. Obviamente, não entendia o porquê. Como você sabe, tive uma infância privilegiada. Mas quando meu privilégio financeiro era invisível, eu sentia realmente o que é ser gente como eu. Eu era apenas um moleque reduzido a uma cor. Um cabelo crespo. E não importa o que fizesse, essa seria a imagem ressaltada.

Com o passar dos anos a situação mudou. O que na infância sobrava, começou a faltar. A família não era estruturada como antes. A escola não era mais particular. Comecei a me enxergar mais em gente como eu. A viver um pouco de sua luta diária e a entendê-la. Mesmo ainda sendo privilegiado se comparado aos meus semelhantes.

Em poucos meses juntos, você já tinha percebido que a exigência que eu me impunha era muito forte. O resultado foi ser o primeiro filho (o único como eu) a ingressar em uma universidade pública. Fui, também, de longe, o que mais cedo começou a trabalhar e a passar em um concurso público aos 18 anos. Eu era o futuro da minha família. Não podia falhar. A cobrança veio de berço. O filho da suburbana não podia dar munição a gente como você dizer que estávamos encostados no meu pai. A reproduzir que gente como eu só é bem-sucedida se for jogador de futebol ou cantor. 

Claro que, isso tudo estando em uma posição extremamente privilegiada para alguém como eu. Entrei pra Engenharia Civil na UFF. Um sonho para muitos. Com 19 anos eu tinha um emprego, um carro, um futuro. Um futuro que nunca foi o que eu planejei, mas gente como eu não pode olhar para trás e desistir. Não é permitido repensar. Não pode aproveitar a juventude como aqueles outros tantos da minha turma faziam.

E esse acúmulo de tarefas me fez entrar aos poucos em um buraco. E você, que sempre me apoiou, esteve ao meu lado nas conquistas, torceu por mim, já não parecia a mesma. A frase que mais ouvi era que eu estava acomodado. Com a faculdade, com o trabalho, com o relacionamento. Não, eu nunca estive acomodado.

Estava vivendo uma vida que não era minha. Vivia o terror que é fazer Engenharia em uma universidade pública com a base de uma escola pública. De que, apesar de ser tratado com respeito, não conviver com gente como eu. Não me enxergar em ninguém. Estava isolado. E quando decidi largar o trabalho para me dedicar exclusivamente à faculdade, me afundei de vez. 

Não eram raros os dias em que maratonava de 7h da manhã às 22h na faculdade. Aula, bandejão, sala de estudo. Rotina diária que você via de perto. Eram frequentes os nossos encontros pelo campus. Eu sempre estava lá. Porém, por algum motivo inexplicável, os resultados não vinham.

E você torcia e se alegrava muito com o meu sucesso. Mas, assim como eu, nunca soube lidar com o meu fracasso. Não vou ser demagogo. Falhei muito no relacionamento. Mas sempre estive ali quando precisava lidar com suas falhas e inseguranças consigo mesma. E nunca vi essa reciprocidade. 
Hoje consigo ver que gente como eu não tem direito de falhar. De ficar inseguro. De pensar em desistir. No sucesso, somos alvo. No fracasso, não somos vistos com compaixão assim como fazem com gente como você. Nós dois somente reproduzimos isso.

Mesmo vivendo isso tudo, ainda não consegui enxergar o motivo. Para mim era assim com todo mundo. Lidar com pessoas esperando seu fracasso e desdenhando do seu sucesso desde pequeno me fez naturalizar isso. Ver gente que, sem motivo algum, não gostava e fazia coisas contra mim. Eu não entendia, mas já não ligava. Hoje, fica claro pra mim que o preto quando é bem-sucedido incomoda muito mais.

Tive que aprender a me fingir de bobo. A simular uma falsa inocência. A me vestir bem desde cedo. Senão, seria visto como suspeito, seria alvo. 
A aprender a ignorar os olhares e comentários quando nos viam juntos. Não foram poucas as situações. A sociedade o tempo inteiro tentava nos empurrar que você era demais para mim. Embora eu nunca deixasse que isso me atingisse, aos poucos foi entrando em você. Em doses homeopáticas, mas entrava. E mesmo assim eu ainda não enxergava o motivo.

À medida que o tempo passava, era mais nítido o quanto éramos diferentes. O problema é que eu não entendia o porquê. Estava submetido a um racismo estrutural que eu mesmo ajudava a alimentar. A nossa construção social como indivíduo corroborou com isso. Hoje eu entendo. Mas até então, os motivos estavam ali, escancarados.
E não faltaram exemplos.

Como aquela vez em que eu fiquei bravo quando me contou que deu uma nota rasgada pro cara que vende açaí em frente à faculdade. Apesar de não ser certo, não entendia o porquê de ter tanta raiva quando você fez isso. Hoje, vejo que é o tipo de coisa que gente como eu não faria impunemente. Somos vigiados em supermercados. Declarados culpados por um pote de margarina. Porém a sua pele branca e seu cabelo loiro te permitiram passar despercebida. Você não era suspeita. Alguém como você nunca faria isso. Mas fez.

Outra vez em que fiquei com uma raiva fora do comum foi quando descobri que você tinha colado em praticamente todas as provas do período. Ali eu realmente senti que tinha muita coisa errada. Como você tinha conseguido? Hoje sei. Apesar de eu nunca ter gostado de colar, os olhos dos professores de uma universidade, predominantemente composta de gente como você estavam sempre voltados para mim. E para gente como eu.

É incrível. Gente como você não é suspeita. Tem o privilégio da cola. Os privilégios ultrapassam a barreira da ética e da legalidade. O racismo está em todas as estruturas. E esse exemplo banal consegue expor perfeitamente.

Retornando à nossa história. Eu me afundei. Sentia que não era mais capaz. Ouvi durante o ano em que não conseguia mais reagir ameaças sobre término. Fingia para mim mesmo não levar à sério. A engenharia me sugava por completo. Como último recurso, pedi um tempo. Não conseguia mais aguentar os seus julgamentos e a sua certeza de que eu estava acomodado. Porém, não pensei em terminar, afinal, já éramos um casal há 6 anos e ficaríamos juntos para sempre, não é? Esse tempo era para tentar imergir naquilo que eu achava que precisava fazer. 

Alguns dias após, percebi que você tinha tomado uma decisão. Terminar. Não tive forças para argumentar. Somente nos despedimos, tivemos uma última noite e fim. Tempos depois, descobri que, naquele momento, eu já estava afundado há 2 anos em uma depressão. 

Nesse tempo, eu não pude me abrir. A carga histórica diz que gente como eu tem que ser forte. Não pode se preocupar com "essas bobagens". Isso se enraizou em mim. E em você. E as vezes em que eu lutava para dizer o que estava acontecendo, não era ouvido. O que reforçava a tese anterior.

Gente como eu não tem o direito de reclamar. Entrar em depressão? Que besteira, vitimismo. Você tem tudo. Tem uma namorada maravilhosa. Realmente era. Mas que nunca iria entender o que é ser gente como eu. 

O tempo passou. Inevitavelmente, tentamos voltar. Você ficou muito mal. Eu, triste com sua postura no término, não conseguia agir como antes. Foi uma merda. Mas eu estive ali. Juntando os meus cacos para tentar te levantar. Afinal, gente como você não pode passar por isso sozinha. - E não pode mesmo. Mas gente como eu passa. Todo dia. E não é levada a sério. - Enfim. Fiz isso até o final. Até o momento em que fui à sua psicóloga e ela disse que era melhor nos afastarmos. Assim fizemos. Mesmo que eu soubesse o quanto isso iria me doer. E doeu. Demais.

Meses depois, tentei me reaproximar. Não aguentava mais ficar longe. Mesmo monitorando de longe para ver como você estava. Mesmo falando sempre com a sua mãe. Você estava melhor. Mas não queria mais. Não queria nada. Nem se reaproximar. Nem me ver.

Aí me afundei de vez. O fundo de um poço em que não via saída. Foi foda.

Quem já passou por isso sabe que não dá pra se abrir com qualquer pessoa. E eu só tinha uma a quem recorrer. Aquela que não queria me ouvir.

Não vou me aprofundar aqui. Implorava pela sua atenção. Ali, não pensava mais em volta, namoro ou o que fosse. Só queria uma mão. Alguém que pudesse me ajudar. 

E ainda não consigo reproduzir muitas das suas respostas quando te implorava por ajuda. É algo que faço questão de tentar esquecer. 

No meio disso tudo, a situação piorou. Não tinha mais forças para levantar da cama. Perdi 5kg em duas semanas. Estava isolado. Busquei ajuda. Não adiantava. O fundo do poço.

Quando no dia 26 de julho, resolvi te contar algo que martelava na minha cabeça, mas nunca achava que teria coragem de externar. De que estava passando a maior parte do meu tempo pensando em como acabar com isso tudo de vez. A resposta? Você sabe qual foi. Me bloqueou. Em todas as redes sociais. Bloqueou o número do meu pai também. Você tinha algo mais importante para aquele dia. A minha vida não era mais um problema seu. 

Suicídio? Para gente como eu? Vitimismo. Drama. Fingimento. Chantagem. Sim. Eu ouvi isso de você. Chantagem. 

Meses passaram. Busquei outras formas de ajuda - muito mais indicadas. Reuni forças, comecei o tratamento. Longe de estar bem. Mas não mais no fim do buraco. E você decidiu que me veria.

Nos encontramos por alguns meses. Estava me medicando. Mas tinha recaídas. E as vezes que nos encontrávamos nessa fase de recaídas, você sabe o que acontecia. Meus problemas não eram mais da sua conta. Você sumia. 

Eu servia quando estava bem. O sexo era bom. E só isso que eu tinha que oferecer. Gente como eu está acostumada a isso. Mas até ali eu não estava. Principalmente vindo você.

Foram longas conversas, mas os meus problemas não importavam. Os seus sim.  

Dizia que não podia recuperar os laços que tínhamos. Que precisava se conhecer. Não podia entrar um relacionamento. Ok, tudo bem.

Porém isso contradiz o que também me disse sobre querer se sentir amada pela primeira vez. Pera aí. Ficamos juntos por seis anos. Eu te amei a ponto de te dedicar os melhores anos da minha vida. De dividir minha casa, meus planos, minha família.
A verdade é que você quer ser amada por alguém como você.
E, não dou 6 meses para você engatar um relacionamento, muito provavelmente com alguém como você. Que não vai precisar fazer muita força. Não fará nada diferente. Só terá a sua cor de pele e todos os privilégios embutidos nisso. E isso basta.

Alguém que a sua família dirá: "nossa, mas que mudança hein", "realmente ele tem mais a ver com você mesmo", além dos: "achava o * legal, mas (aí entra os tantos julgamentos que somente gente como eu sabe o que é ouvir).

Não posso esquecer das suas amigas. Inclusive aquela que é gente como eu, mas sempre se classificou como "preta de alma branca". Que nunca se mostrou confortável com o nosso relacionamento. Prefiro não pensar nas frases reproduzidas por ela. Vindo de gente como eu, fere muito mais.

Mas, agora, acabou. As feridas vão se fechar. E não vou permitir que mais delas sejam abertas por gente como você. Que acha que é demais para gente como eu. 

Gente como eu não é escada, trampolim. Como quando você falou que voltaria comigo só se eu ficasse rico. E admitiu estar sendo sincera. Eu sei. Voltaria. Mas eu não.

Gente como eu merece ser amado por gente como eu. Que sabe o que passamos. Que entende nossa luta diária, estigmas, traumas. 

Foram 6 anos.

Foi bom. Crescemos juntos. 

Mas acabou. O racismo estrutural destrói.

Essas são minhas últimas palavras.

Palavras essas, que gente como você.

Nunca vai entender.


Niterói, 27 de dezembro de 2019.


Legal que você chegou até aqui. Esse texto é real e resolvi compartilhar aqui porque achei que seria importante dividir essa história. 

O racismo está em tudo. Quem escreveu isso esteve aí pertinho, convivendo quase diariamente com vocês.

São palavras que atingem de maneiras diferentes os leitores. O intuito é esse. Causar indignação, reconhecimento, reflexão. 

Resolvi manter o anonimato, mas se achar importante, fique à vontade pra compartilhar. 

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