O isolamento físico e mental: ensino remoto na rotina dos professores de idiomas dos cursos da UFF

 O Alô, Gragoatá! conversou com três professoras que contaram como está sendo o processo sob os novos moldes

Por Luiza Martins

 

Foto:https://epocanegocios.globo.com/Brasil/noticia/2020/07/uerj-e-uff-voltam-aulas-de-forma-remota-em-setembro.html


O isolamento social imposto pela pandemia de Coronavírus afetou diretamente as mais diversas áreas de nossas vidas. Por mais que a realidade atual pareça um filme de futuro distópico, há  nove meses, o mundo vem encontrando formas de suprir a necessidade de presença física para que a população continue trabalhando, estudando e exercendo sua rotina na medida do possível. No entanto, se por um lado, tornamos  possível manter o cronograma de tarefas e obrigações em dia, por outro, o custo mental e emocional da nova realidade vem se tornando um fardo cada vez maior. 

Na Universidade Federal Fluminense, as coisas não são diferentes. A solução encontrada para a manutenção das aulas foi trazê-las para ambiente online. Para a graduação, o semestre letivo foi iniciado no mês de setembro e de forma exclusivamente remota, assim como em outros dois projetos da faculdade bem conhecidos pela comunidade acadêmica e voltados para o ensino de idiomas. O primeiro deles é o Programa de Universalização das Línguas Estrangeiras (PULE), que é focado no público universitário da UFF – em especial o de baixa renda – e tem como objetivo difundir o ensino das línguas para situações específicas, como provas de nivelamento e de proficiência, editais de intercâmbio e currículos. O segundo é o popular Programa de Línguas Estrangeiras Modernas (PROLEM), que funciona de forma semelhante a um curso comum de idiomas: o foco é ensinar a língua de maneira geral e sem direcionamento específico. O PROLEM é um curso pago, diferentemente do PULE, e que admite alunos que não sejam estudantes universitários  da UFF. Por conta dessa característica, as aulas não obedeceram ao calendário oficial da universidade – estão ocorrendo normalmente desde o início da pandemia, também de maneira remota.

O modelo, no entanto, está longe de ser o ideal, principalmente para os professores atuantes. Além de repensar e reestruturar o planejamento de suas aulas, que até então eram físicas, os docentes muitas vezes nem mesmo têm a oportunidade ver os alunos, que costumam assistir às aulas com as câmeras fechadas. Durante a pandemia, os relatos de sobrecarga e do surgimento de uma sensação de isolamento vinda dos professores têm sido inúmeros. Considerando essas questões e, também, o fato de que o ensino de idiomas tem necessidades específicas que podem ficar comprometidas na modalidade remota, o Alô, Gragoatá! conversou com Marina Logullo, Bruna Lugatti e Fernanda Stroligo, três professoras atuantes nos projetos que aceitaram comentar sobre os desafios do modelo remoto e sobre a saúde mental dos professores nesse período. E apesar dos depoimentos trazerem muitos pontos em comum, duas coisas saltam aos olhos imediatamente: a exaustão constante e a frustração com qual elas têm de lidar todos os dias. 

  A primeira especificidade do ensino de línguas que deixa a desejar na modalidade remota é a questão da imersão. Marina, professora de Francês no PULE, conta que esta é sempre problemática mesmo fora da plataforma, uma vez que se trata de um curso de idioma estrangeiro em um país que não o fala – logo, este quesito sob os moldes online se torna ainda mais complicado. Antes da pandemia, o diálogo era promovido em eventos e pelo contato com alunos estrangeiros; falantes nativos do idioma. A professora alega que a ponte se tornou mais difícil com a modalidade remota, o que levou-a a traçar uma estratégia de unir turmas menos experientes com as de nível mais alto para que pudessem manter o contato com a fluência. Ela alega, entretanto, que mesmo com a tentativa de reestruturar a proposta das aulas, elas são bem diferentes em relação ao modelo presencial: “o rendimento deles é bem discrepante. Antes da pandemia, tínhamos aulas de mais de três horas e essa duração é inviável dentro desse modelo. Os alunos não conseguem ficar concentrados mais do que duas horas e meia, que é o tempo que estamos usando hoje. Eu mesma tenho dificuldade em manter uma linha para as explicações durante esse tempo inteiro. As atividades em grupo também não são as mesmas, porque a interação deles entre si muda bastante. Fora os problemas de conexão, que comprometem o entendimento. Nas aulas virtuais, a gente tem que compactar tudo e ainda assim, algumas coisas não se desenvolvem.”

  Para Marina, o processo não é orgânico. Ela conta que não consegue manter o seu ritmo natural porque o entendimento dos alunos através da plataforma online é comprometido, o que torna sua fala engessada e antinatural. A professora também relatou o desconforto trazido pelo modelo, citando um problema que teve desde o início de não conseguir se aos alunos tanto em termos psicológicos quanto emocionais. “Foi um processo de adaptação complicado. Eu tive muita dificuldade de chegar onde eu queria com as aulas. O tempo diminuiu. O tipo de planejamento mudou. A internet é um buraco sem fim e para mim é difícil lidar com esse excesso de informação. Sinto falta da sala de aula, de escrever no quadro, de olhar nos olhos dos meus alunos... Emocionalmente, isso mexeu muito comigo. Eu questionei a minha capacidade de trabalho e minha competência várias vezes por causa desse momento que estamos vivendo. Agora, estou passando por um processo de automatização. O primeiro período do ano foi o mais difícil, mas agora eu acho que me tornei meio que um robôzinho.”

  O depoimento de Bruna, que também leciona língua francesa no PULE e no PROLEM, corrobora muitas das questões levantadas por Marina. Bruna contou ao Alô, Gragoatá que se define como uma professora presencial. Tendo isso em vista, ela alega estar sofrendo muito e sentindo falta do contato físico da sala de aula. Ela revelou que, para driblar os impedimentos relativos ao novo modelo, ela tem trabalhado com uma quantidade maior de materiais autênticos e deixado que seus alunos os administrem com mais autonomia: “Eu foco em dois ou três documentos e disponibilizo mais para que eles consultem”, explica. “Além disso, eu tenho solicitado muito a participação dos alunos nas aulas, principalmente os que não ligam as câmeras. Tem sido bem dinâmico e é isso que eu tenho buscado nesse modelo. Tento disponibilizar esse material, também, para que eles possam se familiarizar com o conteúdo, já que trabalho muito a competência oral. É importante que haja uma troca e que não seja uma palestra.”

  Ambas as professoras falaram sobre a problemática das conexões com a internet. Bruna admite, inclusive, que é difícil planejar uma aula sabendo que está sujeita a qualquer imprevisibilidade advinda dessa área. Ela conta que “qualquer planejamento que você faça pode se tornar inútil por conta de problemas técnicos. Infelizmente, você se prepara e mas não necessariamente aquilo vai acontecer do mesmo jeito, já que um aluno pode ter um problema com a câmera, outro com o microfone, um outro com a conexão e a aula acaba ficando picotada. Por mais que a gente, como professor, já tenha o conhecimento prévio, é difícil lidar por ser muito imprevisível. Não dá para contornar tudo, por mais que a gente saiba que essas coisas acontecem. É raro conseguir traçar um  plano que dê completamente certo e isso em si é bem frustrante.” 

A exemplo de Bruna, Marina também encara a falta de acesso à uma boa internet como o principal desafio do modelo remoto. Ela conta que já passou por diversas situações em que isso foi crucial para o (não) desenvolvimento de suas aulas, tais como a conexão dela caindo ou a dos próprios alunos. Ela cita a necessidade de repetição constante do conteúdo por conta dos atrasos de conexão como uma das questões mais debilitantes durantes suas aulas. Além disso, relata que “a tela é cansativa, a luz que eu coloco atrás do meu computador para que os alunos me vejam faz mal à minha vista, os barulhos dos ambientes me desconcentram e é muito mais difícil, para mim, prestar atenção numa tela do que em pessoas.” Apesar de alegar não ter tantos problemas com o planejamento das aulas em si, Marina acredita que a execução sempre esbarra na problemática da internet, desde a falta de feedback até os atrasos de áudio que tiram as informações de contexto. Como Marina, Bruna também acredita que a energia posta numa aula remota é bem maior do que a em uma aula presencial, o que torna o modelo consideravelmente mais exaustivo.  

  Bruna deixa claro que não enxerga o ensino remoto como algo estreitamente ruim. Segundo ela, a modalidade torna possível que as pessoas continuem a exercer suas profissões durante a pandemia, supera barreiras geográficas e, de certa forma, torna os horários das aulas mais suscetíveis às disponibilidades dos estudantes. Entretanto, para ela, o modelo remoto não é para todos os professores e nem para todos os alunos e é necessário criticar, enxergar suas problemáticas e ter o cuidado de não romantizá-lo. Ela acredita que falte este tipo de reflexão por parte das pessoas que gerem a modalidade: “não tem como imaginar que uma aula presencial de três horas de duração vai render da mesma forma e com o mesmo tempo no espaço online. É preciso refletir criticamente sobre isso e ainda há muito no modelo remoto para ser aprimorado. Penso que evoluí muito como professora online desde março, mas ainda há um caminho longo pela frente.”  Sobre a fadiga, Bruna conta: “em fim de ano, o cansaço é normal. Acho que o desgaste é até aceitável considerando as peculiaridades desse. Nesse momento, começo a perder um pouco da minha força. A tensão que o modelo online coloca em cima da gente é absurda e certamente não contribui, ainda mais por conta de fatores como esses que citei sobre as internet, que nem todos os alunos compreendem de bom grado. A situação não é fácil e eu vivo em uma montanha-russa. Tenho aulas incríveis e que me deixam feliz, assim como tenho aulas que me fazem me sentir muito mal e triste. Uma oscilação constante.”

  Fernanda Stroligo, assim como Marina e Bruna, é estudante de Letras e leciona língua francesa no PROLEM. Ela também contou um pouco sobre suas estratégias para suprir as limitações do período remoto. Segundo ela, o contato dos estudantes com a língua faz muita falta e trabalhar no ambiente online é um enorme desafio. Fernanda relata que precisa elaborar atividades pensando em não estar o tempo inteiro no papel de mediadora e tenta sempre trazer temas recorrentes e comuns aos alunos, ainda que não funcione todas as vezes. Ela cita como exemplo atividades feitas a partir de entrevistas, dramatizações, exposições de temas, conversas telefônicas e ressalta que é necessário sempre promover o diálogo, estejam os alunos em grupos ou duplas. A participação deles, porém, como disseram Bruna e Marina, fica comprometida: “é muito menor, seja qual for o tipo de atividade. Acredito que a razão seja a falta de contato direto e interação entre alunos, já que é muito difícil de equiparar os momentos das aulas presenciais com as ‘janelinhas pretas’ da aula online. Pela fisionomia de cada um podemos entender o que estão pensando, se há dúvidas, se querem se manifestar, se estão cansados, se têm um comentário, se precisam de ajuda… Tudo isso ocasiona atividades de produção oral desenvolvidas e realizadas em muito menos tempo. Promover a interação é sempre um desafio, seja comigo, seja entre eles. É necessário ter uma estratégia e por vezes insistir, algo que seria facilmente contornável no ambiente presencial.” 

Para Fernanda, não ter a certeza de que os alunos estão acompanhando o conteúdo e absorvendo a aula é um problema enorme. Toda e qualquer forma de avaliação ou prova feita neste modelo parece ineficaz aos seus olhos. A professora alega ter que estar se reinventando o tempo inteiro para suprir esses buracos, o que torna a experiência solitária e cansativa: “Na primeira parte de 2020, fomos pegos de surpresa tendo que ensinar online sem qualquer treinamento e contato anterior e, por isso, tudo era mais precário e improvisado, logo, muito desesperador e frustrante. Agora, na segunda metade de 2020, ao continuar ensinando na modalidade online, já estou mais acostumada com tudo o que envolve as aulas, todo o processo de planejá-las, de aplicar o que foi planejado, fazer uma pergunta e não ter resposta, de ter que mudar uma atividade na hora ao ver que a estratégia não funcionou, com todas as instabilidades e adversidades do ensino remoto e com todos os sentimentos envolvidos. É cansativo, muito mais trabalhoso e bastante solitário, de fato, e eu não vejo a hora de voltar a estar em uma sala de aula presencial em contato direto com os meus alunos.”

Fernanda, que além de ministrar aulas de francês no PROLEM, é assistente no setor de Português para Estrangeiros da UFF, também contou como os moldes remotos estão sendo prejudiciais especificamente para seus alunos estrangeiros. Ela deixa bem claro que as realidades socioeconômicas dos estudantes dos dois projetos são bem diferentes, já que o Programa de Estudantes-Convênio de Graduação (PEC-G) conta com estudantes advindos de países em desenvolvimento que fazem o curso a fim de obter a aptidão em Língua Portuguesa, uma vez que a vaga pré-aprovada que eles têm em universidades públicas depende de um exame que realizam ao final do ano. Em entrevista, Fernanda explicou: “o meu trabalho com português para estrangeiros é voltado para produção e compreensão oral. Para esses alunos, há uma questão muito maior envolvida porque eles dependem dos ambientes do campus e da cidade para desenvolver o português deles. São alunos que vêm para o Brasil com uma vaga garantida para estudar em faculdades públicas sob a condição de passar em uma prova de proficiência que envolve as quatro competências idiomáticas. Eles passam o ano letivo aqui estudando e trabalhando diariamente todos os aspectos da língua para isso. Esse ano, eles já chegaram ao Brasil em contexto de pandemia. Não tivemos contato pessoal e já começamos a trabalhar de forma remota. Muitos estão isolados e só nos encontramos remotamente. Eu trabalho com compreensão escrita e principalmente produção oral, em grupo, seguindo os elementos provocadores e a interação face a face do exame, o que é difícil de ser reproduzido de forma remota. Além de tudo, eles não tem contato o suficiente com a língua, já que muito do que aprendem vem de frequentar o Bandejão, a Cantareira, a quadra, a biblioteca ou até os pilotis dos blocos. E nada disso está acontecendo. A imersão e o desenvolvimento ficaram muito prejudicados. E eles ainda têm que lidar com a pressão de passar na prova de proficiência, que foi adiada esse ano. Fora a situação econômica deles, que é bem complicada. Tem muitos passando dificuldades. São alunos vindos de países em desenvolvimento que têm alguma relação com o Brasil. A maioria, do continente africano ou do Haiti. O Bandejão faz toda a diferença para eles, por exemplo, e nem isso está sendo possível no momento. ” 

É importante ressaltar que há estudos que apontam para o crescimento no índice de depressão, estresse e ansiedade durante o período de pandemia. O Alô, Gragoatá! agradece imensamente pelos depoimentos cedidos pelas professoras e presta sua solidariedade a todos os docentes trabalhando através do modelo. 


Comentários

  1. Como sempre, Luiza demonstra ter domínio da escrita portuguesa. Matéria fluida e muito bem escrita, parabéns pelo seu trabalho.Ler sua matéria é simples e fácil. Mudaria apenas esse pequeno trecho para "Infelizmente, você se prepara e mas não necessariamente aquilo vai acontecer do mesmo jeito" para "infelizmente, você se prepara, mas não necessariamente aquilo vai acontecer do mesmo jeito"."Entretanto, para ela, o modelo remoto não é para todos os professores e nem para todos os alunos e é necessário criticar, enxergar suas problemáticas e ter o cuidado de não romantizá-lo. " eu terminaria o período em "todos alunos" e começaria a nova sentença. "ainda há muito no modelo remoto para ser aprimorado." Colocaria que ainda há muito no modelo à ser aprimorado.

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  2. Oi Luiza, achei sua matéria incrível!
    Como aluno do PULE, eu concordo que a falta de imersão no idioma realmente afeta bastante no resultado no aprendizado das aulas.
    Seu texto foi muito bem escrito, talvez um pouco longo, mas não achei que isso afetou na experiência da leitura, pelo contrário, você abordou com temas com muita qualidade! Parabéns!

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  3. Seu texto tá muito bom, Luiza! Eu gostei bastante de ver esse outro lado dos professores, porque muitas vezes nós também nos sentimos assim e achamos que do outro lado tem só super pessoas que tem zero sentimentos e não passam pelos mesmos problemas que a gente né?

    Só teve uma frase, essa aqui "Infelizmente, você se prepara e mas não necessariamente aquilo vai acontecer do mesmo jeito"

    depois do "Você prepara e" ficou faltando algo?

    Parabéns pela matéria! :)

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  4. Oi, Luiza. Depoimentos muito bons que você conseguiu colher. Ler essa matéria me fez acreditar que você é uma excelente entrevistadora. Alguns pontos que observei:

    Primeiro quanto a estética do texto. Em alguns parágrafos tem recuo antes do começo e outros não. Não sei se isso é a forma como você escreveu ou é a forma como foi para o site, mas se foi a forma como você escreveu fica aí o toque.

    No último parágrafo você escreve: "É importante ressaltar que há estudos que apontam para o crescimento no índice de depressão, estresse e ansiedade durante o período de pandemia". Seria legal citar pelo menos uma pesquisa. Da forma que está me parece um pouco vago.

    A frase "A professora também relatou o desconforto trazido pelo modelo, citando um problema que teve desde o início de não conseguir se aos alunos tanto em termos psicológicos quanto emocionais" me pareceu meio confusa, principalmente em "conseguir se aos alunos". Acho que deve ter faltado uma palavrinha aí no meio.

    Por fim, a frase "Fernanda Stroligo, assim como Marina e Bruna, é estudante de Letras e leciona língua francesa no PROLEM" faz parecer que Marina e Bruna também são estudantes de letras. Se elas realmente são alunas de Letras seria legal colocar essa informação mais perto da apresentação delas.

    É isso. Bom Trabalho





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