Sobre vivências trans: a experiência de ser transgênero na UFF

Em um cenário em que cada vez mais pessoas trans ocupam as universidades, há a necessidade de tornar esse espaço ainda mais acolhedor, dando lugar às narrativas desse grupo.

Por Mayra Castro


Foto: Pinterest


Apesar da população de pessoas trans ainda ser muito escassa dentro das universidades e de enfrentarem muitos desafios, o espaço da Universidade Federal Fluminense vem se tornando cada vez mais acolhedor. Diante de todos os obstáculos, a comunidade encontra formas de se colocar nesse lugar, reafirmando sua identidade a partir de projetos como o TransUFF.


De acordo com levantamento da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), apenas cerca de 0,2% dos graduandos de todo o país se consideram trans, apesar de 11,6% não se identificarem como cisgênero. A UFF foi uma dentre as universidades brasileiras que buscou mudar esse cenário, implementando cotas específicas para estudantes desse grupo. Em pesquisa realizada em 2019 pelo projeto TransUFF, foi verificado que a federal possui uma população trans/travesti com cerca de 47 alunos em todos os campi, em um universo de mais de 40 mil estudantes.


Para Leo Arrighi, estudante de produção cultural, em comparação com outros ambientes educacionais, a UFF é um espaço acolhedor. Segundo ela, “os conflitos existem e ainda existe muito apagamento simbólico das nossas narrativas enquanto pessoas trans, mas eu acho que como a universidade, principalmente a pública, se propõe a ser um espaço de debate de ideias, a gente tem um espaço pra disputar e [...] por mais que haja divergência, ela é colocada de forma respeitosa”.


Leo acredita que não ocorre tanta evasão por esse grupo, já que as oportunidades são muito escassas e os alunos que conseguem adentrar esse ambiente “seguram essa oportunidade com muita força”, como diz ela. Além disso, há políticas afirmativas dentro e fora da universidade que tentam garantir a permanência dessas pessoas. A graduanda ainda acrescenta que o que a ajuda a se colocar nesse espaço é se unir à uma rede de amigos e pessoas que passam juntos por essas experiências.


A professora Céu Cavalcanti concorda que a UFF é uma universidade receptiva para pessoas trans, tanto por parte do corpo docente, quanto pelo corpo discente. Ela compara sua vivência na federal com as várias seleções que fez para diversas universidades privadas, em que nunca conseguiu ser contratada. “Foi ficando evidente pra mim que [...] por mais que eu tivesse um bom currículo, uma boa oratória, uma boa didática, sempre acabava esbarrando num elemento não dito, marcando que aqueles lugares não eram pra mim", conta.


Tanto Leo quanto Céu observam a importância de protocolos que adotam nomes sociais para alunos e professores, sendo a UFF uma das primeiras universidades a contar com esse sistema. Ainda assim, Céu encontrou dificuldades em ter seu nome social no sistema de informações e acredita que esse foi um de seus maiores desafios. Ela acrescenta que foi um processo, por vezes até frustrante, entender em quais lugares seu corpo trans cabia ou não.


Em 2019, o professor Rafael Saar idealizou o projeto TransUFF, com o objetivo de criar mais um espaço de representação das pessoas trans na UFF. A ideia era realizar uma série para o youtube da Unitevê (TV da UFF), em que cada episódio contaria com relatos de personagens trans sobre suas vivências no ambiente acadêmico. A produção do projeto de extensão sofreu um atraso por conta da pandemia e hoje estuda formas de continuar remotamente, à espera do retorno presencial.


Foto: Youtube da Unitevê


De acordo com a professora Denise Tavares, coordenadora do projeto, “o TransUFF ajuda muito a reduzir os preconceitos absurdos contra as pessoas trans. A grandeza das histórias de vida que o TransUFF traz, colabora [...] para que o melhor de nós se sobreponha aos nossos próprios e infelizes preconceitos”. Para ela, a UFF, “enquanto espaço de ciência e de conhecimento” tem o dever de se engajar na luta pelo fim da ignorância da população brasileira, que é a campeã mundial em assassinatos de pessoas trans.


Diante dessa população, que ainda tem muita dificuldade de respeitar pessoas que não se enquadram nos padrões de cisgeneridade, o TransUFF não se viu ileso dos desafios. Um dos formulários de pesquisa do projeto acabou chegando em pessoas que o vandalizaram com mensagens de violência transfóbica, além de ameaças, como racismo, xenofobia e até antissemitismo. Apesar do contratempo, o projeto continuou firme e se apresenta como um núcleo de resistência, convidando pessoas trans a se sentirem acolhidas dentro de espaços que podem ser tão ameaçadores para grupos marginalizados.


Leo, que foi bolsista do projeto, e Céu, uma das personagens convidadas a participar, concordaram o quanto o TransUFF foi significativo para promover e ampliar o debate sobre a comunidade, de forma crítica, potente e afetiva. Além disso, também foi importante para unir pessoas que passam por experiências parecidas e ao mesmo tempo tão diversas, assim como impedir que essas pessoas passem despercebidas na comunidade acadêmica.


Apesar de ainda haver um grande abismo entre o número de estudantes e professores trans dentro das universidades, sendo o segundo muito menor, Céu acredita que estamos vivendo um momento transicional. “É meio paradoxal essa relação de ainda sermos poucas, mas já somos um pouco mais do que há cinco anos atrás e somos menos do que daqui a cinco anos, por exemplo. Então [...] eu consigo ficar um pouquinho mais otimista de que a gente ‘tá’ num tempo de mudanças”.

Comentários

  1. Nossa, incrível! Amei a reportagem, muito bom saber mais sobre o assunto e seu talento é enorme ❤️

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