Por mais um ano, a cidade de Niterói não vai às ruas festejar o Carnaval.
Por Francielly Barbosa
Foto 1: Ensaio de rua da Acadêmicos do Sossego em 2021
Reprodução: Arquivo pessoal
Ruas vazias, silenciosas, sem a agitação do dia-a-dia e a animação sempre pulsante da época pré-carnaval. Em março de 2020, em razão do isolamento social por conta da pandemia de Covid-19, esse foi o cenário que se estabeleceu nas cidades. E, quase dois anos depois, se mantém com o cancelamento do carnaval de rua e com o adiamento dos desfiles das escolas de samba no município de Niterói — ainda sem uma nova data —, que acontecem na Rua da Conceição, e também na cidade do Rio de Janeiro, no Sambódromo da Marquês de Sapucaí, onde irão ocorrer no final de abril. Por mais um ano, Niterói não verá fantasias, purpurinas e paetês reviverem suas ruas.
Da Babilônia à Cidade Sorriso
No mundo, a história do Carnaval é antiga: pode ser associada à comemorações e rituais no templo do deus Marduk, na Babilônia; a celebrações na Grécia Antiga em homenagem ao deus Dionísio — Baco para os romanos — e à Igreja Católica durante a Idade Média, quando o avanço do cristianismo pela europa ressignificou a festa. O feriado — cujo nome deriva de carnis levale, “retirar a carne” — passou a ser o período anterior à Quaresma, quando os cristões adotavam uma série de restrições para a Páscoa, sendo o último momento para extravasar e gozar em abundância.
Apesar das mudanças ao longo dos séculos, uma característica que se manteve nas festividades carnavalescas foi a inversão da ordem social e a discussão da realidade política. Se antigamente escravos, mesmo que por um único dia, assumiam mantos de reis, hoje, no Brasil, homens ignoram os papéis predefinidos de gênero e saem às ruas vestidos como mulheres, adultos se fantasiam de crianças e trabalhadores improvisam a postura de patrões. Isso enquanto uma variedade de expressões culturais e discussões sociais, como racismo, machismo, LGBTfobia e herança religiosa, são entoadas nos sambas-enredos.
“Ora, iê, iê, ô, mamãe Oxum
Vem com ondinas reinar”
Trevas! Luz! A Explosão Do Universo, composição de Dominguinhos do Estácio, Flavinho Machado, Heraldo Faria e Ignácio Ribeiro Filho, interpretada por Dominguinhos do Estácio em 1997.
Foto 2: Carnaval Banho de Mar à Fantasia
Reprodução: Laboratório de História Oral e Imagem (LABHOI) da Universidade Federal Fluminense (UFF)
As ruas sempre foram espaço de discussão política, o que não poderia ser diferente com o Carnaval que, para além da folia, ganha espaço também para debater a realidade social do país. “O carnaval historicamente tem importância fundamental dentro da cultura nacional, ferramenta de resistência e união entre o povo, o carnaval representa e unifica a cultura popular”, compartilha Fred Machado, presidente da torcida organizada da niteroiense Unidos do Viradouro.
Uma cidade sem folia
Em Niterói, o Carnaval recebeu muita influência da festa na cidade do Rio de Janeiro. Um momento de destaque para o município foi em 1997, quando a Viradouro, nascida em rodas de samba no quintal da casa do sambista Nelson dos Santos, mais conhecido como Jangada, foi pela primeira vez campeã do grupo especial na Sapucaí, feito que só iria se repetir 23 anos depois, em 2020, no último carnaval do país. Neste ano, em 10 de fevereiro, como relembra o carnavalesco e compositor Ignácio Ribeiro Filho, apelidado como Mocotó, esse título tão importante da agremiação no desfile carioca completa 25 anos, mas o momento que deveria ser de alegria para a escola e para toda a cidade se tornou mais um período de angústia.
“Explodem as maravilhas
Vejo a vida brilhando afinal!
Surge o homem iluminado
Com hinos de luta e cantos de paz:
É o equilíbrio entre o bem e o mal
E com o coração nesta folia
Seja noite ou seja dia, amor
Eu quero me acabar!”
Trevas! Luz! A Explosão Do Universo, composição de Dominguinhos do Estácio, Flavinho Machado, Heraldo Faria e Ignácio Ribeiro Filho, interpretada por Dominguinhos do Estácio em 1997
Na primeira terça-feira do ano, o terceiro da “Era Covid-19”, a Prefeitura de Niterói anunciou o cancelamento do carnaval de rua, além do desfile de blocos, do carnaval de bairro e da realização de festas em clubes. Somado a isso, também houve o adiamento do desfile das escolas do município, seguindo decisões de outras cidades do estado e do país, em razão do avanço da contaminação pelo coronavírus e do número de casos da variante ômicron, registrada na África do Sul em novembro do ano anterior e que teve sua primeira morte confirmada no Brasil pelo Ministério da Saúde dois dias após o anúncio em relação ao feriado. “O risco de nova infecção por Covid-19 pela variante ômicron é seis vezes maior entre pessoas que não tomaram a vacina ou que não completaram o esquema vacinal”, informa publicação de janeiro deste ano do Instituto Butantan. Além da presença da nova mutação, outra preocupação é a contaminação pelo vírus influenza, que pode fragilizar ainda mais o organismo dos cidadãos.
Foto 4: Anúncio da Prefeitura de Niterói sobre o cancelamento do carnaval de rua e o adiamento dos desfiles das escolas de samba na cidade
Reprodução: Perfil no Twitter da Prefeitura de Niterói
A notícia de mais um ano sem Carnaval desperta a saudade do ano anterior entre os foliões. Como Fred contextualiza, “infelizmente, vivemos atualmente dias atípicos e se tornou necessário o cancelamento do carnaval [de] 2021, que fez muita falta não só a mim, mas a todos os apaixonados que vivem e acompanham diariamente o maior movimento cultural do país”. A expectativa para 2022, depois de dois anos de aflição, era alta e contava com preparação total das escolas de samba, como Anderson Oliveira da Silva, promotor de eventos e porta-bandeira da Acadêmicos do Sossego, salienta: “A gente tinha uma expectativa muito grande de fazer um grande carnaval, como vamos fazer [...], mas lidar com o cancelamento foi tipo jogar um balde de água fria na gente. Mas nós entendemos que é por conta da saúde das pessoas”.
Para Anderson, a decisão dos órgãos públicos foi precipitada, já que nos últimos meses, especialmente durantes as festas de final do ano, aconteceram eventos que deixaram os lugares tão lotados quanto as arquibancadas da Marquês de Sapucaí. O Carnaval entre fevereiro e março seria possível “porque tem outros shows privados, outras festas privadas, acontecendo e eles cobram o cartão de vacina, vamos dizer assim, das pessoas vacinadas, então no Carnaval não seria diferente”, explica. Neste ano, de acordo com dados da prefeitura, Niterói conta com 8.175 casos confirmados de Covid-19 e 14 óbitos até o momento, o cancelamento das celebrações de rua veio com a intenção de evitar o aumento de contaminados e uma possível pressão sobre o sistema público de saúde, contudo, a existência dessas comemorações paralelas, como evidencia o carnavalesco da Acadêmicos do Sossego, contradizem esse objetivo.
Foto 5: Ensaio de rua da Acadêmicos do Sossego em 2021
Reprodução: Arquivo pessoal
Os impactos no Carnaval niteroiense são também muito mais profundos. A celebração tem grande relevância sociocultural, sendo um espetáculo não só no país, mas também no exterior. Em 2020, por exemplo, de acordo com levantamento realizado pelo Ministério do Turismo à época, esperava-se no Rio de Janeiro cerca de 1,9 milhões de turistas de outros estados e países. Como Anderson ressalta, “o Carnaval tem uma importância muito grande. O Carnaval gera emprego, o Carnaval sustenta famílias, o Carnaval é a maior cultura do nosso país, da cidade do Rio de Janeiro. O Carnaval traz benefícios para todas as redes, [como] a rede hoteleira [e] até para a pessoa que bota seu isopor na sua porta nos dias de Carnaval, para vender a sua bebida, para vender a sua comida. O Carnaval abalou a estrutura financeira não só da cidade, dos grandes empresários, mas dos pequenos empresários também”.
O feriado tem impacto econômico não apenas no estado, mas também para vendedores ambulantes, pequenos e médios empresários e os próprios carnavalescos. Além disso, o adiamento do desfile da Sapucaí para abril traz outra questão, já que essa “é uma época do ano em que não existe uma programação individual no turismo e serviu”, como pontuou o presidente da torcida do Viradouro. Somado a isso, nesse cenário de proibição da festa nas ruas, vale ressaltar a possibilidade da comemoração migrar para espaços fechados e privados, onde a contaminação pode ser ainda maior, especialmente entre pessoas que não completaram o ciclo de vacinação.
Além dos efeitos na economia dos personagens da cidade, há também impacto no espírito da festa. “Eu tenho certeza que não vai ser a mesma coisa em abril, não vai ter o mesmo calor dos dias de carnaval, daquele feriado que todo mundo espera, daquela tensão pré-carnaval [...]”, lamenta Anderson. Já para Mocotó, será exatamente o contrário: “Nós [sambistas] estamos ansiosos para fazer o que a gente gosta, oferecer ao público aquela festa que é a maior do universo. Nós estamos ansiosos para que isso venha a acontecer. E pode ter certeza que o Carnaval [será] grandioso, de todas as escolas”. Foi um longo ano de preparação e talvez não seja o Carnaval esperado, no entanto, ainda é uma época de alegria e distração. Mesmo com a população longe das ruas, a folia renasce e resta agora aguardar com o coração ansioso o próximo ano.
“É na magia do sonho que eu vou
Mitologia no samba, amor”
Orfeu – O Negro Do Carnaval, composição de Dadinho, Gilberto Gomes, Mocotó e Paulo César Portugal, interpretada por Domiguinhos do Estácio em 1998
Mais informações:
Anúncio da Prefeitura de Niterói sobre o cancelamento do carnaval de rua e o adiamento do desfile das escolas de samba na cidade. Disponível em: https://twitter.com/NiteroiPref/status/1478496663241170946?s=20&t=qHJ-sO-U9CVr_iWub6Nheg.
Painel Covid – Prefeitura de Niterói. Disponível em: http://www.niteroi.rj.gov.br/painelcovid/.
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