Nova temporada do maior reality show da TV aberta brasileira abre debate público sobre a importância da discussão de temas da comunidade queer
Por Laís Reis
Foto 1: Cinco participantes do BBB22 com a banderia LGBTQIA+
Divulgação/TV Globo
“Travesti” é a pessoa que no nascimento foi designada ao gênero masculino, mas se identifica como figura feminina, utiliza os pronomes “ela” e “dela” e não segue o binarismo “homem X mulher”. Esse ano, a chegada da multiartista Linn da Quebrada na primeira semana do Big Brother Brasil (BBB), reality show da rede Globo e um dos programas mais comentados na mídia brasileira, gerou debates sobre gênero e sexualidade entre os participantes e no lado de fora da casa. Por conta de falas transfóbicas reproduzidas por jogadores, que afirmam não saber a maneira de se portar ou referir diante de uma travesti.
Como foi visto na última edição, a representação de LGBTs na mídia televisiva, caminha junto de dois extremos, podendo trazer consequências severas nas vidas dessas minorias ou positivas na constituição de uma sociedade mais consciente e respeitosa. A julgar pela possibilidade de ressignificar o imaginário popular, a socióloga, Hellen Oliveira, comenta que os corpos LGBTQIA + precisam estar presentes, principalmente, em programas como o BBB, pois nunca tiveram muita visibilidade e diversidade na mídia. “A importância é total, visto que o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo pelo décimo terceiro ano consecutivo, já passou da hora de trazer este debate para as casas brasileiras”, explica.
A presença do maior número de participantes dessa comunidade da história do BBB é mais que um acontecimento, é um ato político. Ao ver de Gabriel Moreira, estudante de serviço social na Universidade Federal Fluminense (UFF), mais do que a participação desses indivíduos em canais de grande audiência, é preciso, além de tudo, naturalizar suas existências, para que possam contemplar a vida de forma plena. “Eu acredito que colocar pessoas LGBTQIA+ em espaços de destaque ou visibilidade tem uma importância por ser uma oportunidade de nós podermos contar nossas histórias e em alguma medida naturalizar socialmente a nossa presença em espaços que antes nos foram negado”, diz.
Receptividade do público
Os episódios de transfobia e homofobia no programa, além de revoltar os internautas, acendeu o alerta para o debate do tema. Em suas primeiras 24 horas no reality, a artista Linn da Quebrada foi alvo de comentários ofensivos, como o termo pejorativo “traveco” que foi usado para se referir a travestis e a troca de seu pronome feminino por “ele”. Quem também passou por situações desagradáveis, foi a camarote, Brunna Gonçalves, esposa da cantora Ludmilla, que foi perguntada diversas vezes se realmente era casada, o que não aconteceria se estivesse em um relacionamento heteronormativo. Por meio de uma analogia com o filme Enola Holmes, a estudante de publicidade da UFF, Maria Luísa, ressalta os problemas cometidos pela sociedade atual: “A personagem Edith, uma empresária negra, diz a maior das verdades sobre o porquê das pessoas não se importarem em mudar. ’Você diz que não se interessa por política, sabe por quê? Porque não te convém mudar um mundo que lhe favorece’. Ou seja, enquanto atos como errar pronomes, invalidar sexualidades e corpos forem vistos como erros comuns, o mundo nunca vai ser diferente”.
De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transsexuais (Antra), o Brasil foi o país que mais matou pessoas trans no mundo em 2021, sendo 135 travestis e mulheres transsexuais e cinco homens trans e pessoas transmasculinas. Estima-se que a idade das vítimas varia entre 18 a 29 anos, além de adolescentes que vêm sendo assassinados cada vez mais cedo. Apesar de crimes por LGBTfobia no Brasil terem sido criminalizados no ano de 2019, o país ainda caminha lentamente na garantia de direitos e inclusão dessa comunidade na sociedade brasileira. Sendo assim, o que acontece no BBB é reflexo do preconceito estrutural da sociedade, como é enfatizado por Gabriel: “A Linn tem tido uma boa repercussão dentro da casa e apoio aqui fora de uma parte considerável da comunidade LGBTI+. Mas por outro lado, ainda somos o país que mais mata pessoas trans/travestis do mundo, em uma semana de casa já vi diversos ataques a presença da Linn vinda de grupos conservadores e isso é reflexo da dificuldade do senso comum de criar em seu imaginário a possibilidade de ver travestis (e principalmente travestis negras) em um lugar que não o de inferioridade”.
Foto 2: bandeira LGBTQIA+ e cruzes
Reprodução: Agência Brasil
Em seu artigo “Lixo e Gênero, Mijar/Cagar, Masculino/Feminino”, o filósofo contemporâneo e escritor transgênero, Paul B. Preciado, vai trazer o debate de como a arquitetura trabalha de forma silenciosa e certeira, como o design de um banheiro público que direciona o comportamento que cada gênero deve ter, quem vai urinar em pé ou sentado. A transsexualidade é tão antiga quanto cisgeneridade, nos séculos 15 e 16 os imigrantes europeus chegaram no norte da américa e se depararam com os povos indígenas que ali moravam, e todas essas tribos tinham conhecimento de 3 a 5 gêneros humanos, e viviam em um mundo de não-binários. Mas, é somente a partir de 2007 que países como Nepal, Índia e Austrália, começam a considerar juridicamente o “terceiro gênero”. “Essa ideia dentro do imaginário do senso comum, ao meu ver, não é particular da maioria dos brasileiros e sim de uma construção sobre a sexualidade dentro do Ocidente enquanto um projeto político que se perpetua desde o colonialismo. Desde então, em menor ou maior escala, nos diferentes períodos da história, a sexualidade passou a ter consequência punitiva para quem fugisse das normas sociais”, pontua Gabriel.
A primeira travesti
Em sua apresentação no programa, Linn fez um discurso emocionante e no final afirmou: “Sou o fracasso. O fracasso de tudo que queriam que eu fosse. Não sou homem, nem sou mulher, sou travesti”. Depois de Ariadna Arantes, a cantora é a segunda pessoa trans e primeira travesti a participar do Big Brother Brasil. E o que pode parecer banal para alguns, significou um marco para sua comunidade, já que a sua presença na casa provoca impacto direto nas relações de opressões sofridas no cotidiano de LGBTQIA +.
Foto 3: Linn da Quebrada sorrindo
Reprodução: Arquivo pessoal Nick Thomás
Desde que pisou na casa, Linn deixou claro que devia ser tratada por pronomes femininos, razão pela qual tem tatuada na testa a palavra “ela”. Mesmo assim seu pronome foi trocado e sua identidade negada diversas vezes, a situação fez com que o apresentador Tadeu Schmidt pedisse para a cantora explicar o significado da tatuagem, para que o erro nunca mais fosse cometido. Para Maria Luísa, o problema se dá por conta de pessoas que se negam a assumir seus erros, a quem chamou de “preconceituosos aprendizes”. “Estes que, por notarem o grande poder cancelador e punitivo da internet, se dizem estar ‘aprendendo’ para validar os seus preconceitos, assim como a maioria esmagadora da população brasileira”, explica.
Nesta edição 22, participantes que pertencem a minorias sociais, de raça e gênero, têm sido pressionados por outros jogadores para explicarem o básico sobre direitos humanos. Os autores dessas perguntas indesejadas são pessoas brancas, com um alto poder aquisitivo e que tiveram acesso ao estudo fora da casa. Por se recordarem dos “cancelamentos” do ano anterior, os BBBs negros e LGBTQIA+ não responderam com a “militância” esperada, pois se sentem incomodados pela posição de “professor” que é imposta. "Além disso, existe uma ideia de que as pessoas inseridas em grupos oprimidos que vão ao programa tem o dever de falar sobre suas vivências para outres participantes. Isso, além de ser violento para essas pessoas em muitas vezes se verem coagidas a falar em rede nacional sobre suas dores, também gera um problema de valorização do lugar de fala sob os estudos acerca de gênero, sexualidade e raça”, acrescenta Gabriel.
Em oposição a todos os estereótipos de hipersexualização e criminalização de transexuais e travestis, os efeitos positivos da presença da Linn na mídia nacional para a comunidade LGBTQIA+ já são evidentes. Nos últimos dias, as buscas pelos termos “travesti” e “mulher trans” dispararam na internet, e pela primeira vez o Dia Nacional da Visibilidade Trans, 29 de janeiro, foi tratado pelas mídias com a proporção e relevância que merece. Desta forma, é importante que a luta e o debate sobre o tema não acabe junto com o final do programa, é preciso que a participação de Linn da Quebrada abra caminho para muitas outras pessoas trans e travestis.
Diversidade
Foto 4: Charge sobre homofobia
Reprodução: https://coredacao.com
Entre os atuais BBBs, 6 dos brothers e sisters se identificam como pessoas LGBTQIA+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Queer, Intersexuais, Agênero e mais). Nos últimos anos, além da política de diversidade de gêneros e orientações sexuais em suas novelas, a TV Globo também tem objetivado trazer inclusão no elenco do reality mais assistido do Brasil. Em contraste, uma pesquisa Datafolha de 2021, revela que 51% da população brasileira é contra casais homoafetivos em propagandas de televisão. “Ao mesmo tempo que sexo e sexualidade se tornam na modernidade temas públicos e políticos passam também a sofrer muitos estigmas e valores que se constroem em torno desses temas para controle. Isso ocorre enquanto um projeto político que busca conservar valores e instituições importantes para o funcionamento e contenção de crises do capitalismo, como a é o caso do discurso de proteção da família”, contextualiza Gabriel.
No combate a LGBTfobia, programas de entretenimento de ampla circulação como o Big Brother Brasil são de extrema relevância, ao trazer temáticas da comunidade queer para os lares de milhares de brasileiros, “mostrando corpos bissexuais, gays e travesti, sendo determinados, corajosos e medrosos”, como é dito por Linn da Quebrada em seu discurso. Desse modo, a comoção do povo brasileiro para com esses participantes é só um pequeno passo da mudança que está por vir. Pois como diz a música “Até Quando?” do cantor Gabriel Pensador: “A gente muda o mundo na mudança da mente”.
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