Aquele salgado ali, por favor!

As crônicas gastronômicas entre joelhos e italianos

por Yuri Neri

Foto: Yuri Neri

“Salgado popular e barato de massa pesada, recheado de presunto e queijo”. Essa é uma das definições possíveis para a palavra joelho de acordo com o Dicionário Informal. Apesar de ser assim que os cariocas se referem ao famoso lanche, ai de quem disser isso do outro lado da Ponte Rio-Niterói: por aqui, o salgado religiosamente se chama italiano. Há quem diga, inclusive, que os dois se tratam de quitutes distintos, e o bairrismo apimenta a rivalidade quando as questões são levantadas - qual é a forma certa de falar e qual deles é o mais gostoso?

Para Lays Senrra, que trabalha no ramo alimentício em terras fluminenses há 6 anos, o salgado é o mesmo nas duas cidades e somente a nomenclatura difere. “Eu morava no Rio e sempre chamei de joelho. Depois que me mudei pra cá e conheci o italiano, me acostumei com ele. Hoje acabo achando estranho quem o chama de joelho”, comenta a comerciante. Entretanto, é fato que existem algumas nuances entre os dois, visto que os italianos normalmente são acompanhados da emblemática maionese temperada e possuem uma grande variedade de sabores - com adição de cebola, calabresa e outros ingredientes -, enquanto o joelho é mais tradicional, seguindo a fórmula clássica de presunto e queijo. 

Luiz Fernando Xavier, niteroiense nato, ratifica as diferenças lanchonéticas entre as duas cidades, e ele tem embasamento para opinar. Seu pai trabalhou no Bar do Largo do Machado, no Rio de Janeiro, e às vezes ele levava para casa um exemplar do joelho, cuja massa, segundo Luiz, é mais fina que a do italiano. Como um bom cidadão fluminense, ele prefere a versão niteroiense do alimento e, quando perguntado sobre como se refere ao salgado nas lanchonetes do outro lado da ponte, Luiz Fernando diz que só aponta. “Aquele salgado ali”.

Morador do Rio, Felipe Guimarães também ressalta a qualidade da massa do joelho, mas se rende à inventividade e aos recheios do italiano. “Eu tenho 39 anos. Chamo ‘aquele salgado ali’ de joelho desde criança, mas a palavra joelho tem tanta espessura histórica quanto a palavra italiano. A discussão mais legal é sobre a qualidade, aí acho que o italiano tem alguma vantagem”, relata o experiente consumidor de quitutes. De fato, espessura histórica é o que não falta nos lanches de ambos os lados da baía de Guanabara, já que os dois têm grande presença na cultura de suas respectivas cidades. 

Para os niteroienses, o salgado é oriundo de uma adaptação fluminense a elementos típicos da culinária italiana, tais como as massas e o queijo, e isso justifica o nome. Enquanto isso, a versão mais aceita pelos cariocas em relação à origem do joelho tem como protagonista o jornalista e poeta satírico Emílio de Meneses. Nela, o “chantalet de queijo e presunto” era exposto logo abaixo das coxinhas nas lanchonetes do início do século XX. Dessa forma, o salgado foi batizado de joelho pelo poeta a partir de um trocadilho, visto que ficava logo após as coxas.

Existe uma teoria que torna o debate ainda mais complexo ao relacionar o fenômeno linguístico às duas cidades. É o que Gabriel Guimarães ouviu de um professor nos tempos de escola: “o nome original do salgado era joelho italiano e, com o tempo, uma parte do nome foi simplesmente deixada de lado - curiosamente, partes diferentes em cada lado da ponte”.

Apesar de divergirem, niteroienses e cariocas sabem que a alcunha correta não é bauru, assim como chamam os paulistas. A propósito, é bolacha ou biscoito? Quiçá os mineiros o chamem de trem. A verdade é que a variedade linguística nunca impediu ninguém de comer, e por isso italianos e joelhos triunfam juntos como o salgado das massas, cada um em seu lado da baía. Talvez fosse uma solução chamar o quitute de ginocchio, isto é, “joelho” em italiano.

Comentários

  1. Yuri, excelente matéria! Amei não só o tema mas a abordagem, além de ter achado a solução perfeita pro debate haha

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  2. amei! eu sempre falo salgado mesmo dkalkLzkK

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  3. Sua matéria é um primor! Não só consegue dialogar com a maioria dos leitores por ter uma linguagem acessível e expressões do cotidiano da maioria dos brasileiros como também constrói uma reflexão ímpar sobre uma divergência da variedade linguística presente no Rio de Janeiro.

    Começar com um lead conceitual sobre o salgado deu uma certa elegância a algo que parece ser por muitas vezes apenas trivial. E oscilar entre a voz do povo e do acadêmico para construir a matéria foi uma jogada de mestre, pois consolida tanto um fator identitário ao trazer o relato da grande massa consumidora dos salgados quanto um argumento de autoridade ao introduzir o professor.

    Você ainda conclui com uma reflexão sobre a nossa riqueza linguística de maneira leve e coesa, propondo de maneira cômica uma solução para um debate interminável e que talvez nem precise terminar. Uma matéria que não poderia ser escrita por outras mãos, parabéns!

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  4. Yuri, que genial! O pessoal acima já fez todos os elogios, então só assino embaixo. Texto saboroso, de verdade - tão saboroso quanto um joelho, que nós cariocas já tentamos ensinar aos niteroienses mas eles teimam em chamar pelo nome errado. ;-)

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  5. Muito bom! Não sabia das versões sobre a origem da palabra joelho.

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  6. Que matéria massa! Literalmente, hahahahah. Muito gostosa de ler, bem construída e interessante. Parabéns :)

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