Desde dezembro do ano passado, o Museu de Arte Contemporânea de Niterói (MAC Niterói) abre as portas para artistas da periferia e traz à discussão o olhar desse grupo sobre a cultura.
Por Francielly Barbosa
Foto 1: Museu de Arte Contemporânea de Niterói
Reprodução: Arquivo pessoal
Se a cultura é a porta para o mundo, o artista é a chave: em dezembro do ano passado, por três domingos consecutivos (5, 12, 19), o pátio do Museu de Arte Contemporânea de Niterói foi palco dos DJs Luga Mendes, William Moreira e Jef Rodriguez, esses que participaram do projeto musical de oficina de DJs do Macquinho, na Comunidade do Palácio. No meio disso, o espaço interno do museu recebeu a sexta edição da exposição coletiva “Suburbanidades: O Lugar da Periferia nas Artes Contemporâneas”, disponível para visitação até 12 de fevereiro deste ano. A mostra tem destaque especial por trazer artistas de diferentes realidades, fora do eixo centro e zona sul do estado, além das diversas linguagens produzidas por esses territórios. São essas iniciativas que trazem ao público o olhar periférico sobre a cultura.
Foto 2: Cartaz da exposição “Suburbanidades: O Lugar da Periferia na Arte Contemporânea” no espaço externo do museu
Reprodução: Arquivo pessoal
Por mais que ao se pensar em periferia, especialmente no Rio de Janeiro, a primeira imagem que vem à mente seja a dos morros, definir esse espaço vai muito além da localização física, como explica a professora de Antropologia da Universidade Federal Fluminense Ana Cláudia Cruz da Silva. São territórios distantes do centro geográfica e socialmente, onde mal há — ou mesmo não existe — a presença do Estado. “A favela é, sem dúvida, produto da desigualdade social. A questão de você pensar a cidade e entender a cidade como sendo para todos não existe. A cidade vai ser pensada como podendo ser apropriada por uma parte da população, justamente a parte mais rica, a parte que é mais favorecida economicamente, e a outra parte da população vai sendo expulsa para cada vez mais longe do centro, cada vez mais longe da [parte da] cidade que funciona melhor”, compartilha.
Esse distanciamento não envolve apenas os serviços públicos, mas engloba da mesma forma o universo da cultura. A professora de artes, grafiteira, curadora independente e idealizadora da exposição presente no MAC Niterói Cynthia Dias, conta que ao se graduar na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), em Seropédica, não tinha espaço para expor os seus trabalhos justamente por aquele local não integrar os circuitos culturais conhecidos. Complementa que “sabia que tinham outras pessoas na mesma situação e em 2017, que é quando o projeto começou, não tinha todo esse movimento, esses territórios pra falar de periferia. Então surgiu a oportunidade de fazer uma exposição no Centro de Artes Maria Tereza Vieira, no centro, e aí eu levei essa ideia pra eles”. Foi assim que nasceu a exposição coletiva que em sua atual edição conta com 26 artistas de diferentes locais do estado. “O nosso objetivo é mostrar as nossas narrativas em primeira pessoa. A gente não quer ninguém falando pela periferia. A gente quer mostrar a periferia pelos nossos olhos, pela nossa linguagem, pelo nosso modo de ser e viver a cidade”.
Além disso, como a curadora aponta, a arte é um meio que reproduz a realidade social do país. “Vemos que os artistas mais bem estabelecidos na arte contemporânea brasileira são homens brancos de família rica. Esse é o perfil que vai dominar todas as esferas da sociedade brasileira”. Para Cynthia, quanto maior a quantidade de recortes sociais, maior a dificuldade de acesso a essas instituições. A presença de pessoas periféricas, mesmo que insuficiente, é um sinal de esperança e de subversão de posições. “A gente tem que ocupar todos os espaços, não só os espaços reconhecidos, oficiais. A gente tem que criar nossos próprios espaços”, ressalta, “e a gente não quer só ser visto pelas pessoas da elite, a gente quer que nosso povo nos veja também”.
O discotecário, pesquisador autodidata, arte-educador e professor de filosofia Jef Rodriguez, nome artístico de Jeferson Rodrigues Barbosa, nascido em uma comunidade rural em Ilhéus, no sul da Bahia, e que em 2015 passou a morar no Morro do Palácio, também discute a escassa presença da periferia, especialmente de pessoas negras que, em razão do processo histórico de desenvolvimento dos centros urbanos, correspondem à maior parte da população nessas regiões. Ter pessoas negras como protagonistas no circuito cultural é relevante por uma questão de reconhecimento e enfatiza que esse número precisa aumentar: “Se nós somos mais do que 50% de pretos no Brasil, [...] esse mesmo número de pessoas precisa ser representado em todos os espaços. Inclusive na divisão econômica. A arte tem que ser só uma referência nesse sentido”.
O DJ também trata da importância de projetos culturais como o Macquinho, no qual era responsável pela oficina de rimas: “Esses projetos são importantes porque é um espaço dentro da periferia onde você oferece a oportunidade de conhecimento de produção artística. Entender que a arte também é uma forma de geração de renda, entender que as pessoas podem sustentar suas famílias com o trabalho ligado a esse tipo de manifestação cultural [e] artística, entender que existem pessoas fazendo isso dentro da comunidade, pessoas da comunidade dando esse tipo de curso [é importante]”. Além disso, ao falar da potência do projeto que hoje, infelizmente, não está mais ativo pela falta de manutenção e do olhar da mídia, acrescenta que essa situação parece apenas mais uma tentativa de demonização da favela, principalmente ao noticiá-la, frequentemente, somente como um lugar de crime, reafirmando esse estereótipo. “Estamos tentando tirar esse estereótipo, tentando um movimento para poder oferecer outras possibilidades para a juventude da comunidade ou para qualquer outra pessoa e me parece uma luta para reafirmar”.
Além da ausência de artistas, é preciso também refletir sobre a inexistência de espectadores periféricos no campo da cultura. Essa questão, como reforça Jef, está muito atrelada à ausência da sensação de pertencimento. “Às vezes o cara da periferia desce [o morro], trabalha a vida inteira e não se vê representado nesse lugar. Esse lugar não fala por ele porque ele não sofreu estímulos para que pudesse se ver nesse lugar ou enxergar outras belezas. O que eu penso é que esses espaços precisam estar bem distribuídos pela cidade”, adiantando que há outros fatores, como a distância de deslocamento até os espaços culturais, geralmente concentrados nos centros das cidades, a falta de disposição — sendo a periferia abrigo da classe trabalhadora que, como afirma Ana Cláudia, é assim chamada “porque vive para trabalhar” —, a precariedade de transporte e a dificuldade financeira. Todos elementos que impedem a presença da periferia como público e a reafirmam como resultado de segregação racial e socioeconômica. Nas palavras de Jef: “Eu acho que existem espaços que são construídos numa perspectiva tão branca e higienizada que faz com que muitas pessoas pretas não se enxerguem naquele espaço e eu entendo que elas falam ‘não vou lá, não, mano, não me identifico’ e a gente tem que respeitar isso”.
Foto 3: Obra de Roberta Vaz no MAC Niterói
Reprodução: Arquivo pessoal
Mesmo com as dificuldades de acesso e produção, a periferia resiste ao mostrar que “a precariedade nunca impediu que manifestações artísticas e culturais nascessem”, como diz o DJ de Ilhéus. “A cultura é importante para qualquer ser humano, independente de que lugar você veio, isso desenvolve sensibilidade, desenvolve outras possibilidades de estética e até a concepção do que é belo pode ser revisto, pode ser ampliado, quando você tem acesso a uma diversidade de obras de arte, a diversas manifestações culturais. Na periferia, o lazer não é algo que a gente encontra muito natural. A gente inventa formas de lazer. Entender que consumir arte faz bem para todo mundo, para a periferia seria importante quanto medida social”.
Assim, ainda que não seja reconhecida, a cultura produzida pela periferia se expande e vai muito além do funk. “A própria cultura hip hop, a música eletrônica africana, a música pop africana, o rock, o reggae”, como exemplifica Jef, são todas formas de expressão que emergiram no seio da periferia e foram apropriadas pela indústria a ponto de suas origens serem esquecidas. “Se o axé, a música baiana, nasce na periferia, nasce de pretos, os principais artistas que chegaram da Bahia, através da axé music, ao conhecimento do Brasil e do mundo são artistas brancos”, continua. Ela é múltipla e suas manifestações artísticas ganharam e ganham cada vez mais o mundo não apenas em um nível local, como a presença dos DJs do Morro do Palácio e dos artistas da exposição concebida por Cynthia Dias no MAC Niterói demonstram, encanta também em um nível internacional e um exemplo notável é o próprio DJ Jef Rodriguez: “Eu sou um exemplo do quanto a arte pode fazer na vida de alguém, de quantas direções a minha vida tem me levado. Conheci quatro países europeus, botei música na novela e sou um cara de periferia”. A discussão agora não é mais que cultura a periferia produz — a resposta é todas —, mas o quão presente ela está no circuito cultural — e a resposta deveria ser sempre.
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