Como a história do país é moldada pela presença feminina nos contextos artísticos e culturais, e a ilustre artista Elza Soares
Por Letícia Souza
Colagem da artista Cecile Mendonça
Reprodução: instagram @picortes_
"Quando alguém que faz parte de uma minoria está conquistando um espaço de relevância, ele está sendo uma semente para que outras pessoas como ele comecem ou continuem a sonhar. Isso nos lembra que a nossa existência não precisa ser resumida à sobrevivência." Com essas palavras de Cecile Mendonça, aluna de jornalismo na UFF e artista, é possível perceber a importância da representatividade e presença das mulheres no contexto artístico e cultural do Brasil atual.
Por meio de pinturas, ilustrações, colagens, textos, fotografias, canções, peças de teatro, filmes e diversas outras formas de arte, a
presença feminina sempre existiu, ainda que retratada pelas lentes masculinas. Nos séculos passados, eram poucas as mulheres que conseguiam driblar o sistema social machista e se destacar nos variados âmbitos de expressão artística. Porém, a conquista de direitos e espaços de relevância social ao longo dos anos reflete como as mulheres não aceitam mais a posição de "musas inspiradoras", mas, sim, de criadoras e protagonistas da própria arte. "A luta para garantir o espaço no mercado da arte vem desde muito tempo, porém somente no final do século XIX que nos foi permitido ingressar na Escola Nacional de Belas Artes, por exemplo.", relembra Cecile.
Inspiração, visibilidade e representatividade: palavras femininas
No século XXI, a vontade feminina de lutar pelo seu espaço e poder se expressar cultural e artisticamente é muito evidente entre as diferentes gerações e, junto a isso, há a certeza de que é possível alcançar essas posições, tendo em vista as inúmeras inspirações que os últimos anos revelaram. Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Gioconda Rizzo, Clarice Lispector, Conceição Evaristo, Rita Lee, Elza Soares, Anna Muylaert, Fernanda Montenegro… são vários os nomes de uma lista enorme de mulheres que mudaram os rumos do país e marcaram a história com sua arte, inspirando cada vez mais pessoas a seguirem os seus passos.
Nesse sentido, as diferentes formas de mídias atuais e o alcance que elas têm facilitam muito a questão da visibilidade e reconhecimento de notáveis personalidades por todo o país. Para Bárbara Luzzen, professora de letras e entusiasta no assunto, hoje a internet e a possibilidade de acesso a diferentes conteúdos, com certeza, também são importantes fatores que proporcionam a ascensão feminina nesse meio. "Estamos vivendo na era da tecnologia e serviços como o Google e YouTube permitem uma ampliação do que a gente consome de arte, uma ampliação crítica sobre o que nos é imposto e ensinado, além do poder de escolher consumir o que tem a ver com a nossa identidade. Eu acho que a saída da passividade e a compreensão de que a arte é também sobre quem consome foi fundamental para que as mulheres passassem a ter suas vozes reconhecidas e valorizadas.", afirma ela.
Além disso, o simbolismo de grandes figuras femininas produtoras de arte e cultura no país também se relaciona com outras questões sociais. Ao adentrar o tópico de representatividade, tão relevante nos dias atuais, pode-se entender tal importância. Ao tocar em pontos pessoais dos indivíduos que finalmente se veem representados por artistas e por obras de arte, também são aflorados sentimentos de esperança e reconhecimento. Sobre isso, Cecile cita a artista Tay Cabral, comunicadora na UFF: "A Tay, por meio de suas pinturas, representa as pessoas pretas de uma forma muito sutil e leve. Ela, enquanto mulher negra, sabe como é cansativo se ver sempre associada à luta, dor, tristeza e, por mais que isso também faça parte da nossa vivência, nós também somos riso, samba, alegria. É muito legal ver que o meu corpo e o corpo de outras pessoas está sendo representado na forma qual eu me enxergo ou, pelo menos, gostaria de me enxergar.".
Os recortes culturais e artísticos
As conquistas femininas na atualidade, apesar de positivas, ainda acontecem de forma gradativa e desigual para diferentes pessoas dentro desse grupo. Desde o século XIX, pode-se perceber a ascensão das mulheres nas áreas de cultura e arte, porém, em sua maioria, são brancas e com maior poder aquisitivo. Para mulheres negras, pobres, indígenas ou, até mesmo, LGBTQIA+, são oferecidas oportunidades muito diferentes e inferiores às outras, mesmo que elas representem grande parte da população feminina brasileira. Um estudo feito a respeito das mulheres negras nas artes visuais e literatura, publicado em 14 de outubro de 2020 na revista Conexão, da Universidade de Caxias do Sul (UCS), aponta que elas conseguiram conquistar e assumir certos espaços e serem autoras das próprias obras, expondo seus discursos e subjetividades por meio de suas perspectivas e vivências, somente a partir de 1980.
Dessa forma, é fato que ainda há um longo caminho a ser percorrido para que a ascensão sociocultural feminina seja completamente inclusiva. Em relação a isso, Cecile aponta: "É muito importante comemorar até onde chegamos e o fato de que existem muito mais mulheres produzindo arte e conquistando espaços, mas também é importante relembrar quem são essas mulheres, qual a cor delas. Devemos celebrar a atenção recebida no mercado artístico feminino nos últimos tempos, porém, ao mesmo tempo, não podemos parar de lutar até que as oportunidades e conquistas sejam as mesmas para todas, independente do contexto social."
Artista Tay Cabral e sua obra
Reprodução: instagram @taycabral
A presença de mulheres como artistas ou protagonistas das obras influencia toda a parte da sociedade que se vê representada por elas. A arte, seja tratada como lazer, entretenimento ou expressão cultural, ao cumprir o papel representativo, também traz visibilidade e sentimento de pertencimento para as mulheres na sociedade. Para Cecile, isso inspira o seu fazer artístico, enquanto para Bárbara, traz uma mensagem de força e possibilidade de mudança dos moldes sociais atuais.
Elza Soares: potência feminina brasileira
Diante da importância da representatividade feminina e a possibilidade de quem faz parte desse grupo se enxergar em diferentes ocupações, é inevitável não citar a grandiosa Elza Soares. Há duas semanas, no dia 20 de janeiro de 2022, a renomada artista brasileira faleceu aos 91 anos, deixando um extenso legado na cultura do país, bem como suas incríveis obras. Considerada a cantora do milênio pela Rádio BBC de Londres e ganhadora do Grammy Latino, Elza marcou a história de milhares de mulheres que se viram representadas pela sua figura.
Cantora Elza Soares no show A mulher do fim do mundo
Reprodução: Marcos Hermes
Mulher negra e de origem humilde, a cantora chegou a lugares em que, antes, dificilmente eram alcançados pelos grupos que ela fazia parte. Sua história de superação e liberdade artística feminina reflete e influencia a vida de todas as pessoas que a conhecem, além de abrir caminho para inúmeras gerações de artistas. Sobre isso, Bárbara comenta: "A respeito do seu legado, o quão bonito foi que uma mulher de outra época fosse tão viva na mente das pessoas! Até jovens, de um tempo diferente do dela, aprenderam a gostar da Elza e reconhecer sua relevância. Isso entra na questão da ampliação e visibilidade que foi conquistada pelas artistas mulheres."
A potência de mulheres como Elza Soares, que conseguem transformar suas dores e vivências em arte e, assim, ganhar cada vez mais espaço na cultura brasileira e dar voz a tantos grupos marginalizados, é de grande impacto para toda a sociedade. Tendo isso em vista, a participação e valorização de produções femininas na literatura, cinema, música, teatro, pinturas e ilustrações, fotografia e todas outras formas de expressão artística são fundamentais para a vida de todas as pessoas que, inevitavelmente, serão tocadas por essas artistas de alguma forma. A luta feminina para ocupar seu espaço é contínua e árdua, porém, como canta Elza: "Meu choro não é nada além de carnaval / É lágrima de samba na ponta dos pés / Mulher do fim do mundo / Eu sou e vou até o fim cantar".
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