Projeto social na comunidade da Grota, em São Francisco, conta hoje com aproximadamente 1.000 alunos, e se prepara para apresentação em festival de música antiga nos EUA.
Por Isabella Cirne
Iniciado por Otávia Selles e, posteriormente, consolidado e ampliado por seu filho Márcio Selles e sua nora Lenora Mendes (casal de músicos e estudiosos da música), o Espaço Cultural da Grota (ECG) está na ativa há mais de 28 anos, transformando a vida de moradores de comunidades e alunos da rede pública de Niterói e arredores. O grupo está com viagem marcada aos EUA para participação no Boston Early Music Festival, um festival norte-americano de música antiga que acontece anualmente.
Orquestra da Grota em apresentação no Teatro Municipal de Niterói - foto da internet
A Orquestra da Grota foi convidada por Clea Galhano a participar do evento, que teve sua versão online durante a pandemia, em 2021, e voltará ao formato presencial esse ano. Com muita garra e mobilização para a arrecadação, o projeto está conseguindo levantar o dinheiro para viabilizar a viagem que acontecerá no mês que vem.
Orquestra da Grota - foto tirada do acervo pessoa
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Lenora Mendes acompanhou o processo de desenvolvimento do projeto, iniciado por sua sogra, e hoje é responsável pelo ECG que, além de formar músicos e professores de música, já rodou festivais e recebeu prêmios por todo o mundo. Inicialmente (na década de 80), o projeto atuava com trabalhos manuais, reforço escolar, entre outras atividades, mas ainda não havia ensino musical. Em 1995, Márcio começou a dar aulas de música (flauta doce inicialmente, depois violino) após insistência da mãe. Otávia faleceu pouco depois, em 1998, deixando Márcio e a esposa sem saber como manteriam sozinhos o projeto, conciliando com seus respectivos trabalhos fora dali, seus quatro filhos e sem grandes ajudas. Apesar das dificuldades, o casal não abandonou o projeto. Lenora passou a dar aulas de música e juntos eles decidiram começar a capacitar os alunos para também darem aula e, assim, manterem o espaço cultural ativo, já que o casal sozinho não daria conta.
Lenora Pinto Mendes, musicista, professora e esposa de Márcio, atual responsável pelo projeto
Orquestra da Grota em seu início, nos anos 90. Foto tirada da página no Facebook do Espaço Cultural da Grota
(Orquestra da Grota em seu início, nos anos 90. Foto tirada da página no facebook do Espaço Cultural da Grota
O projeto hoje é financiado, basicamente, mediante verba de leis de incentivo, além de algumas poucas doações mensais que, sozinhas, não seriam capazes de bancá-lo. O PRONAC (Programa Nacional de Apoio à Cultura, mais conhecido como Lei Rouanet) e a Lei Municipal do ISS são, hoje, as principais fontes de financiamento dos projetos do Espaço Cultural da Grota, responsáveis pelo custeamento das despesas e pagamento dos professores e músicos.
Sediado na comunidade da Grota do Surucucu, no bairro de São Francisco, mas com núcleos em diversos outros pontos não apenas na cidade de Niterói, mas também em outros municípios (Itaboraí e São Gonçalo, por exemplo), o projeto hoje conta com aproximadamente 1.000 alunos, dos quais 250, em média, estudam na sede, e o restante está distribuído entre os outros núcleos (são aproximadamente 14 núcleos no total).
Todos os alunos que entram, passam por um processo de musicalização através da Flauta Doce Soprano. Após um período de aprendizagem, os alunos se deslocam para os instrumentos de seu interesse, como violino, violoncelo, piano, entre outros instrumentos que o ECG e seus núcleos oferecem. Em seguida, eles são direcionados à prática de orquestra para desenvolverem noção e percepção musical. A partir daí, vão passando pelos níveis das orquestras: orquestra D (iniciantes), orquestra C (intermediária), orquestra B (já com nivelamento através de prova) e orquestra A (a orquestra profissional da Grota, também com nivelamento através de prova).
Rafael Alvarenga é um dos tantos que trilharam caminho como professor. Ingressou como aluno, aos 12 anos de idade, no núcleo que havia na comunidade do Preventório, e hoje, aos 20, toca mais de cinco instrumentos e dá aula para iniciantes de todas as idades (desde crianças até idosos). “É uma coisa, assim, de outro mundo estar dando aula ali para as crianças de comunidade, como eu. [...] É como se eu me visse em cada um deles.”, declara orgulhoso.
Rafael Alvarenga, violinista que começou como aluno e hoje professor do projeto
Rafael chegou ao ECG (sede) em 2017, onde foi direcionado para as aulas de seu nível. Em 2018, começou o curso de formação de professores oferecido pelo projeto, que tem 3 anos de duração e ensino aprofundado em teoria musical, aulas de percepção, além de estágio nos núcleos com professores já formados. Apesar de ter conquistado o cargo de professor, Alvarenga não abandonou os estudos musicais: “fui aluno durante muito tempo nessa minha vida musical e sou até hoje, pois não dispenso conhecimento para meu crescimento profissional”.
Além de se encantar pela música e pela prática de instrumentos, Alvarenga não esconde sua verdadeira paixão: lecionar. “Estar dando aula hoje, no local onde eu comecei tão jovem, não tem explicação o quanto isso me faz bem. [...] O retorno que eu tenho dos meus alunos faz eu entender que realmente o meu trabalho está sendo feito.”
Em relação à música, Rafael conta um pouco sobre sua relação e como ela transformou sua vida: “nunca imaginei tocar um instrumento e hoje toco mais de cinco, é muito bom a forma como as pessoas me olham e tratam quando sabem que sou violinista, não tem explicação a forma como meus alunos me olham tocando e dizem querer chegar no meu nível. Tocar um instrumento me deu um nome, uma nova roupagem nessa sociedade e faz eu me sentir especial.”
(Alvarenga tocando violino em apresentação da Orquestra da Grota)
HISTÓRIA DE LUTA E GLÓRIA
(Kely Pinheiro em apresentação na Escola de Música da Universidade de Berkley, em Boston-EUA. Foto do instagram de Kely)
Perguntada sobre uma história que considera marcante dentre tantas histórias lindas de alunos que passaram pelo projeto e conquistaram os palcos do Brasil e do mundo, Lenora destaca a história de Kely Pinheiro, violoncelista, cantora e musicista brilhante que hoje trilha uma carreira de sucesso mundo afora. Entrou no projeto com 7 anos e desde então já mostrava muito talento. Foi criada pela avó na Grota, onde viviam em situação precária e insalubre, numa casa sem piso nem colchão para dormir. Antes de Kely começar efetivamente a tomar aulas, o projeto já havia arrecadado dinheiro para fazer reparos em sua casa a fim de deixá-la minimamente habitável. Lenora conta que Kely sempre se destacou por sua inteligência e, em razão disso (e graças ao esforço das pessoas envolvidas no projeto), conseguiu uma bolsa de estudos em uma escola particular da cidade. Lá, nunca perdeu o ano e fez muitos amigos que também ajudaram em sua trajetória, sempre atravessada por muitos obstáculos. No vestibular, tirou nota 900 na redação do ENEM e passou em 4º lugar para a UNIRIO para cursar graduação em música. Com dois anos de estudo na UNIRIO, fez uma prova e passou para a Universidade de Berklee, em Boston (EUA), e foi para lá estudar por quatro anos, se formando no ano passado (2022). Graças a seu talento, dedicação e às oportunidades que teve, Kely, agora formada, mora e trabalha em Nova Iorque (EUA), e atualmente está em cartaz na Broadway com o musical Hadestown, vencedor de 8 prêmios Tony Awards (a maior premiação de teatro musical do mundo).
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