De mãos atadas

 Os desafios do handebol no Brasil em meio a pandemia

Por Igor Klen

Foto: Globo Esporte/TV Globo


A pandemia global em decorrência da disseminação do novo coronavírus marca 2020 para sempre como o ano de mudanças intrínsecas na sociedade e nas atividades humanas, o que também contempla as práticas desportivas. Durante o ano, diversos esportes tiveram suas competições adiadas ou canceladas, além de modificarem suas diretrizes organizacionais em prol de um retorno seguro (ainda que a pandemia não tenha terminado), adotando os devidos protocolos sanitários cabíveis. Entretanto, dos esportes mais praticados no Brasil, o handebol talvez seja o que mais agrega dificuldades e peculiaridades em meio ao período de isolamento social.

O esporte no qual “se faz gol com as mãos” foi criado em 1919 pelo atleta e professor alemão Karl Schelenz, sendo trazido para o Brasil na década de 30 por imigrantes europeus. Em sua fase inicial, o handebol era jogado apenas por mulheres (“Torball”) e em campo, no qual os times disputavam jogos no formato consagrado do futebol: 11x11. Com o tempo, o handebol foi sendo testado em campos menores e com times menos numerosos, até que, em 1924, por uma demanda causada pelo frio sueco, o esporte passou a ser disputado em quadras de 40x20m (salão/indoor) e esse “novo terreno” foi oficializado em substituição aos campos em 1954, com times de 7 jogadores e sem distinção entre a prática de homens e mulheres (exceto pelo diâmetro da bola, um pouco maior no caso dos homens).

No Brasil, o handebol consegue ser, ao mesmo tempo, um esporte muito praticado (em ambientes educacionais) e pouco “popular”, ficando bem atrás do futebol, do vôlei e do basquete no gosto dos brasileiros. Esse esporte que une características do futebol (ou futsal) pela finalidade do gol e semelhança da quadra, do basquete pelo ato de quicar a bola e do vôlei pelos sucessivos saltos, sempre foi muito benquisto e praticado por meninas e meninos nas escolas e universidades. Além disso, os professores de educação física sempre buscam passar os conhecimentos e regras do handebol, pois esse é um esporte dinâmico, envolvente, que auxilia na avaliação do processo de ensino-aprendizagem, que pode ser usado como instrumento pedagógico, que ajuda na coordenação motora, entre outros.

A equipe do Alô, Gragoatá! conversou com Leticia Merotto, central/ponta esquerda do time de handebol da Atlética de Artes e Comunicação Social (AACS) e estudante de jornalismo na Universidade Federal Fluminense (UFF), que nos deu sua opinião sobre se há uma explicação lógica para essa peculiaridade do handebol em relação à outros esportes: “Existe sim, é a falta de investimento. Quando a gente fala de clubes e lugares fora do ambiente escolar e universitário, é necessário verba para manter os treinos, equipamentos, uniformes, campeonatos. Isso tudo vem através de patrocínio de empresas e investimento da prefeitura, do governo e nenhum dos dois têm interesse nesse incentivo. As empresas pela falta de veiculação na mídia e as prefeituras e órgãos competentes pelo desinteresse político. No ambiente universitário, o dinheiro sai dos próprios atletas e da atlética.” .

No contexto da prática de handebol durante a época de escola, ela nos conta sobre a grande importância que isso teve para continuar praticando na universidade: “Importância total, sempre fui muito apaixonada e ligada à esportes, já pratiquei por volta de 9 modalidades diferentes na minha vida.  Por isso, meus pais decidiram me colocar em um colégio que fomentava muito o esporte, tive muito privilégio nesse sentido. Jogo handebol desde o 6° ano do ensino fundamental, quando tinha por volta dos meus 11 anos, e sou suspeita pra falar, pois me apaixonei de primeira e creio que, se mais pessoas tivessem essa oportunidade, também se apaixonariam. Quando cheguei na faculdade não foi diferente, logo no primeiro mês já tinha participado de campeonatos. É um meio que fomenta muito o esporte e eu jamais desperdiçaria isso.” .

A primeira transmissão de uma partida de handebol em território nacional que se tem registro é de 1996, no jogo Pinheiros x Metodista pelo Campeonato Sulamericano de Clubes, transmitido pela ESPN Brasil. De lá pra cá, houve pouca evolução e apoio ao handebol através das transmissões (mesmo com a escassez de competições em âmbito nacional), o que deixou os fãs de handebol “às escuras” em vários grandes momentos, sobretudo das seleções feminina e masculina do Brasil. A crescente falta de apoio da mídia em não transmitir as competições só dificultou ainda mais o estreitamento do público com o esporte, algo que ficou ainda mais evidenciado durante a pandemia.

Em relação aos percalços ainda maiores do handebol durante a pandemia, nossa entrevistada avalia, com tristeza, o descaso com esse e outros esportes: “Bom, o handebol é um esporte com muito pouco reconhecimento e visibilidade no país, né? E é claro que isso tem diversos fatores culturais e sociais, mas até políticos. É triste esse cenário, não só do handebol, mas da desvalorização do esporte no geral aqui no Brasil. Falando especificamente do handebol e da pandemia, é triste porque com isso tudo, os poucos passos que já demos acabam indo por água abaixo.” .

Toda essa situação de descaso com o handebol (esporte em geral), seja de governos e/ou de emissoras, pode ser exemplificada pelo episódio lamentável do dia 22/12/2013, no qual o que era pra ser um dia de festa do torcedor brasileiro, virou um “dia qualquer” justamente pela falta de transmissão. Nesse dia, o handebol brasileiro entrou para história do esporte ao ganhar sua primeira e única Copa do Mundo da modalidade com o time feminino, derrotando a Sérvia na casa delas por 22x20, diante de uma Arena Belgrado com 20 mil pessoas. Entretanto, infelizmente, quase ninguém viu ou ficou sabendo, pois o jogo só tinha transmissão em um canal pago e que só sintonizava na região nordeste (Esporte Interativo).

“Eu lembro que em 2012 ou 2013, não lembro ao certo agora, o Brasil foi campeão mundial no handebol e os jogos não passaram em canal ALGUM na televisão aberta. Tive que ver pela internet no celular e a mídia só foi falar sobre quando fomos campeões, não houve nem transmissão da final. E aí, parando pra analisar o que isso significa: é um time conseguindo ser campeão mundial mesmo com o investimento extremamente escasso que temos. Pensa em quantos talentos não são desperdiçados só nessa falta de investimento, né? O brasil tinha tudo para ser um país muito forte no esporte, e esporte também gera renda, né? Infelizmente o que acontece é o contrário, muitos atletas não conseguem se manter em clubes, federações e afins por causa da falta de verba. Com a pandemia, o pouco espaço que já conquistamos na televisão, conseguindo ter a emissão de alguns jogos em alguns canais e o pequeno avanço que conseguimos com isso acaba voltando a estaca zero. Esse título escancarou ainda mais a capacidade e a força que o nosso handebol tem, mesmo sem visibilidade e sem investimento.” - disse a atleta do AACS sobre o título de 2013 e a frustração de não assistir.


Foto: EFE - Globoesporte.com


Em geral, as únicas competições de transmissão mais “garantida” de jogos das seleções feminina e masculina de handebol são nos Jogos Panamericanos e Olímpicos. Aliás, é justamente a transmissão dessas competições e o desenvolvimento do esporte ao longo dos “ciclos olímpicos” que fortalece ainda mais os times brasileiros e fomentam a prática do esporte no país. Se tratando de Olimpíadas, o handebol foi introduzido em 1936 (ainda com jogos no campo, em Berlim) e, após um período de fora, retornou em Munique em 1972, tendo o time brasileiro masculino estreado em 1992 (Barcelona) e o feminino em 2000 (Sydney).

Sobre esse assunto do torcedor brasileiro praticamente só poder acompanhar as seleções de 4 em 4 anos, nossa entrevistada analisa o quão prejudicial essa situação é para visibilidade e o desenvolvimento do handebol no Brasil: “Eu diria que quase 100%. A mídia tem um papel muito forte de representatividade e o handebol foi um esporte que surgiu primeiramente sendo praticado por mulheres, o que vai totalmente contra a história do futebol que proibiu mulheres de jogarem por mais de 40 anos. Penso no potencial de representatividade e empoderamento da mulher no esporte que o handebol poderia ter e não tem por falta de visibilidade. Mas falando do handebol tanto feminino quanto masculino, a falta do primeiro contato, do conhecimento do esporte com certeza influencia pra falta de interesse, né? A maioria das pessoas não sabem as regras básicas do handebol. E uma coisa que penso é no quanto é um esporte dinâmico, de contato, com muitos e muitos gols por partida. Isso é algo que me dá muita sede de assistir e jogar o esporte e creio que poderia ter o mesmo efeito no público, caso a mídia veiculasse. Uma pena que não o faz.”


Foto: Site do MKT Esportivo


Em meio ao desleixo com que o handebol brasileiro é tratado, uma forma de ainda fomentar o desejo de crianças e jovens em praticar o esporte e seguir uma carreira esportiva é se espelhar em ídolos (algo em comum entre os esportes). No caso do handebol, o sucesso da seleção feminina campeã mundial de 2013 foi na força de seu conjunto, mas comandada pela armadora Duda Amorim, escolhida a melhor jogadora daquele mundial e a melhor do mundo em 2014, seguindo os passos de Alexandra Nascimento que fora escolhida como a melhor do planeta em 2012. Sobre a inspiração em ídolos no handebol, Merotto também destacou outras companheiras de Duda: “A Duda Amorim, a Ana Paula Rodrigues e a goleira Babi são atletas incríveis que tenho uma admiração sem igual. É claro que ao ver handebol feminino, só a representatividade de ter um time feminino tão bom quanto o nosso em um esporte tão desvalorizado já é algo que não tem preço.” .

Devido a pandemia, todas as competições esportivas tiveram que ser paralisadas e muitas delas foram adiadas para o ano de 2021, além das que foram canceladas. Entretanto, para o ritmo de condicionamento físico não ficar tão defasado, as equipes montaram estratégias de baterias de exercícios e encontros feitos de forma online, até mesmo para auxiliar na manutenção da boa saúde mental. Esse é o caso do time de handebol da AACS, como nos conta a Leticia, que ainda fala se pretende seguir carreira no esporte: “No início, as técnicas passavam uma rotina de treinos físicos para nos mantermos não só fisicamente ativas mas também mentalmente saudáveis, que é um papel do esporte que não podemos esquecer. Mas é claro que, em meio a um período de tantas incertezas e instabilidades, fomos ficando desmotivadas e sem vontade para treinar. Mas o time é muito unido, seguimos sempre em contato, fizemos diversas videochamadas nessa pandemia, às vezes pra beber e rir juntas e às vezes pra termos um ‘treinão’ (haha). Honestamente, não pretendo seguir carreira, levo o esporte mais como hobbie e nem acho que eu seja boa a esse ponto (haha). Mas pretendo juntar o jornalismo com o esporte, isso sim seria incrível.” .

Apesar de todas as dificuldades, o handebol segue firme no coração, na cabeça e nas mãos de seus praticantes, que anseiam pelo fim da pandemia para poderem retornar às partidas e aos torneios, tanto em ambientes escolares e acadêmicos quanto fora deles, além é claro da luta por um maior reconhecimento e apoio por parte da mídia e das instituições em prol do fomento do esporte no cenário nacional, através de parcerias que ajudem no investimento e na transmissão dos jogos. Entretanto, enquanto isso não é feito, será que os(as) atletas, profissionais ou amadores, não poderiam contribuir pela causa de uma maior visibilidade do esporte?

Com a palavra, a estudante e futura jornalista, Leticia Merotto: “Olha, ótima pergunta. Acho que sim, principalmente levantando bandeiras e se mobilizando. Hoje em dia, temos as redes sociais e através delas mesmo podemos nos mobilizar para que transmitam os jogos na televisão, levantando hashtags, compartilhando e seguindo conteúdos sobre handebol nas redes sociais. Só assim conseguiríamos fazer a mídia veicular o esporte, e também fomentar a audiência quando o fizer para que ela siga fazendo e cada vez mais o handebol tenha visibilidade e, consequentemente, investimento.” .

O blog Alô, Gragoatá! agradece a gentileza e atenção da “repórter-atleta” Leticia Merotto, desejando muita saúde à todas as componentes do time e da comissão técnica de handebol feminino da AACS e muito sucesso à equipe nas competições que, com certeza, virão em um futuro próximo.


Foto: @handfem_aacs - Perfil do Instagram


Foto: @handfem_aacs - Perfil do Instagram


E, para concluir, uma curiosidade: em tempos de pandemia e isolamento social, o uso do álcool gel para higienização contínua das mãos (sobretudo quando não é possível lavar com água e sabão) tornou-se essencial para conter a disseminação do vírus. Contudo, você sabia que os(as) atletas de handebol já utilizavam um produto para as mãos muito antes da covid? Trata-se de uma “cola especial” (autorizada e usada também na bola e nos tênis) que auxilia na fixação das mãos ao agarrar a bola, evitando que a bola escorregue por conta do suor no decorrer do jogo, como é possível ver na imagem abaixo. Não é mágica, é handebol!


Foto: Cinara Piccolo/Photo&Grafia


Comentários

  1. Excelente matéria Igor, gostei muito da forma que você contextualizou o esporte, de maneira nacional e internacional, antes da entrevista. A entrevista também foi espetacular, acho que você tirou as melhores respostas da fonte, deram um poder crítico muito importante para a matéria. A organização também foi muito boa, sem parágrafos muito grandes, mesmo com a entrevista, no final você contextualizou ao universo universitário também, acho que não tenho nada a criticar em relação ao conteúdo e montagem da reportagem. Mando meus sinceros parabéns, você escreve muito bem e foi bem legal saber um pouco mais sobre o handebol.

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  2. Muito obrigado, Alexandre! Gostei muito de produzir uma matéria sobre essa pauta, pois além de gostar muito do handebol, a realização do texto me permitiu pesquisar mais sobre o assunto e, consequentemente, aprender mais sobre esse esporte e seus contextos no âmbito da pandemia. Fico muito feliz com o seu comentário e com os elogios seus e da Letícia, que foi determinante na matéria e também me parabenizou anteriormente. Foi legal demais, valeu!

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