Tradução e resistência: o Labestrad, o período remoto e a arte de traduzir

 Você sempre achou que traduzir era passar de um idioma para o outro, né? Então temos uma notícia para você 

Por Luiza Martins

Foto: https://www.raptisrarebooks.com/product/for-whom-the-bell-tolls-ernest-hemingway-first-edition-signed-rare-book-morocco-clamshell-box/


  Você já parou para pensar na quantidade de traduções que você consome diariamente sem ao menos reparar que se tratam, de fato, de traduções? Cada livro estrangeiro lido, tenha ele cinquenta ou mil páginas. Cada episódio da sua série favorita. Aquele jogo fantástico que você adora, com centenas de falas distintas e dezenas de personagens. Ou mesmo naquele filme que você já viu tantas vezes que decorou as falas e nem se abala mais com o idioma. Todas essas informações, tão importantes e ao mesmo tempo corriqueiras em nosso cotidiano, apenas chegaram até nós por conta da existência de um profissional que muitas vezes passa despercebido: o tradutor. E adianto: a tarefa dele não é nada fácil. 

Traduzir uma obra, seja ela proveniente do âmbito que for, é um processo complexo que envolve escolhas precisas. É de conhecimento geral que há diferenças vocabulares entre os idiomas e que algumas palavras não podem ser traduzidas mantendo seu o sentido completo da língua de origem. Este fato, por si só, já um pequeno demonstrativo do quanto uma tradução pode ser difícil, considerando o fato de que cabe ao profissional encontrar uma maneira de tentar manter a informação o mais intacta pensando em todos os seus âmbitos. No entanto, isso simboliza apenas a ponta do iceberg para o tradutor  – é preciso ainda mais para realizar as traduções bem feitas. Questões que muitas vezes passam despercebidas aos consumidores, como o tom da linguagem, por exemplo, devem ser consideradas. Como traduzir literatura do século XIX a fim de manter essa construção essa usando vocabulário proveniente dos grupos jovens da atualidade?  Ou mais ainda: como manter o estilo de escrita de um autor se nem sempre as situações descritas serão equivalentes em idiomas distintos? E quanto aos neologismos? Sentenças feitas a partir de palavras de duplo sentido? Trocadilhos? Piadas?  Rimas? 

Na Universidade Federal Fluminense, há um projeto de extensão que traz a possibilidade de fornecer aos estudantes, o primeiro contato com as complexidades da tradução. O Labestrad, sigla para Laboratório de Tradução da UFF, é gerenciado pelo Departamento de Letras Estrangeiras Modernas, proveniente do Instituto de Letras da universidade, e atua tanto na área de ensino quanto de pesquisa. Para contar mais sobre seus detalhes do funcionamento, o Alô, Gragoatá! entrou em contato com Giovana Campos, professora do setor de inglês da UFF e coordenadora geral do Labestrad. Ela contou que o projeto oferece traduções voltadas tanto para o público interno quanto o externo da UFF e conta com seis idiomas envolvidos – inglês, francês, alemão, russo, espanhol e italiano –, cada um deles com a sua própria equipe de trabalho


Foto: cedida por Giovana Campos

Para que uma tradução seja feita através do Labestrad, é preciso que o solicitante entre em contato, já com a sua proposta de obra. O primeiro ponto a ser discutido pela equipe responsável pelo idioma é o prazo, já que, como salientou Giovana, o projeto também objetiva a formação de tradutores e o ensino é feito a partir de discussões críticas e teóricas para além da prática, o que resulta em um prazo bem maior do que no mercado de comum da área. Também discute-se a modalidade da tradução, a área, a forma de veiculação e afins para, primeiro, descobrir se é possível atender às demandas do solicitante. Giovana explica que, uma vez que o trabalho é aceito, a equipe inicia o chamado “projeto de tradução”, que envolve a pesquisa da área a ser traduzida, do gênero textual, fontes para consultas, potencial de público receptor, objetivos da tradução e afins, para que o aparato teórico aprendido pelos integrantes seja discutido e absorvido antes de entrar, de fato, na prática. Só depois desse ponto, a tradução começa a ser feita efetivamente, aliada sempre aos processos de revisão feitos pelos docentes/orientadores das equipes, que ressaltam os pontos de reflexão. Em seguida, o material é discutido de forma conjunta com o grupo para que chegue à sua forma final, que será enviada ao solicitante. Giovana acrescenta que o Labestrad não trabalha com todas as modalidades de tradução, mas já houve experiências com artigos, contos, capítulos de livros, palestras, legendagem, revistas de tradução, dentre outros. Em alguns casos, o material é traduzido para uso da própria universidade. 

Perguntada sobre o funcionamento do projeto durante o período de pandemia, Giovana lamentou a impossibilidade de realizar as reuniões coletivas, às quais se referiu como o “ponto alto” do trabalho: “todos opinavam, in loco, em um processo de trocas riquíssimo”. Antes da necessidade de isolamento social, o Labestrad contava um espaço privilegiado dedicado à tradução onde era feita parte da carga horária do projeto, com todo o aparato teórico necessário para consulta e equipado para a realização das traduções. Segundo Giovana, “ali, discentes do russo e francês comentavam as traduções do inglês e do espanhol enquanto discentes do francês auxiliavam os discentes do italiano e vice-versa; discentes de graduação e de pós-graduação, que estudavam diferentes línguas, conviviam semanalmente, aprendendo e discutindo tradução. A pandemia acabou com tal experiência, pelo menos em um primeiro momento, mas não encerrou nossas atividades. Tivemos que nos reinventar”. 

Ela informou que as equipes estão usando as ferramentas online com frequência, como e-mails, Google Meet e WhatsApp a fim de manter o contato necessário para a realização das traduções. No entanto, apesar da ciência de que a experiência não substitui a troca que o ambiente possibilitava, Giovana enxerga com os bons olhos os resultados do projeto sob o novos moldes: “Tem sido um alento poder conversar e discutir ideias e traduções vendo os rostinhos uns dos outros, ouvindo e ‘vendo’ em tempo real as ideias, dúvidas e posicionamentos . Infelizmente, não temos mais o acesso aos materiais teóricos e de referência que tínhamos a nossa disposição na sala, e ainda não conseguimos reunir as várias equipes ao mesmo tempo. Entretanto, entendemos que há um processo de adaptação ainda em curso. Aos poucos vamos conseguindo pensar em novas ideias. Podemos dizer que, dadas as circunstâncias, mesmo na pandemia temos nos saído bem, dentro do que é possível. Em nome do Labestrad, aproveito para expressar o agradecimento pela dedicação de todos os docentes e discentes participantes, bem como a chefia do GLE, que nos tem dado grande apoio em um momento tão complexo.”

Estudante do curso de Letras da UFF, Eduardo Bessa é um dos integrantes da equipe relativa ao idioma francês. Para ele, a tradução e a arte estão muito próximas por serem coisas que têm base na subjetividade, na experimentação, na troca e no compartilhamento de cada indivíduo. Ele chama atenção para a definição dada pelo senso comum, que  acredita que, para traduzir algo, é só jogar em uma ferramenta online e o problema estará resolvido: “Não é assim que funciona. A tradução depende de escolhas do profissional, o que acredito ser a maior dificuldade. É preciso sempre estar nesse campo para decidir os parâmetros de tradução. Não dá para traduzir um poema como você traduz uma música, ou um romance, ou um artigo. Todos eles são diferentes, então há esse desafio de perceber essas nuances e determinar essas circunstâncias, o que é o núcleo da tradução. As ferramentas online não te possibilitam isso.”

Eduardo comentou também sobre as peculiaridades do período remoto. Por ter entrado no grupo já em período de pandemia, ele diz nunca ter tido a oportunidade de estar presente em um encontro presencial, mas está contribuindo para os processos por meio de uma plataforma online, onde os professores postam o material a ser traduzido – artigos, verbetes e por vezes, até mesmo romances. Eduardo enxerga o Labestrad como um projeto que agrega muito à sua experiência, já que sua intenção para o futuro é trabalhar como tradutor de jogos eletrônicos: “Embora eu acredite que a parte mais trabalhosa é justamente a de legendagem, eu posso levar isso para os jogos. Lá, eu aprendo a mexer com as ferramentas para fazer a legendagem e, também, como o processo funciona. Eu gostaria de trabalhar com a tradução como uma atividade que não se restringe à literatura; de uma forma mais ampla. O Labestrad, com certeza, tem sido ótimo para mim por conta da prática que ele possibilita. Lá na frente, eu sei que vou ter essa base por causa do projeto, que já vai ter me dado muito apoio.”
Como pontuou Eduardo, o processo de tradução lida diretamente com escolhas por partes do profissional e se aproxima muito mais do âmbito artístico e subjetivo do que a uma ciência de fórmulas e exatidões. Nas obras de caráter textual, por exemplo, o tradutor, desvalorizado e muitas vezes esquecido sob as sombras dos nomes dos autores, precisa não apenas ser um excelente escritor, mas também um exímio conhecedor da língua para qual traduz – normalmente, seu idioma materno.  Em entrevista, a professora Giovana também detalhou mais sobre o processo de tradução e como ele escapa por inteiro do que é determinado pelo senso comum: “é complexo porque não há a equivalência termo a termo. 

A tão apregoada ‘fidelidade’ não existe como algo imutável e fixo, mas relativo. As línguas e culturas possuem diferentes historicidades, variam no eixo do tempo e do espaço, logo, a equivalência, fidelidade e neutralidade totais simplesmente não são possíveis. Traduzir é trabalhar no entre-lugar (entre línguas, entre culturas, entre sujeitos), lembrando que as relações de poder entre as culturas não são simétricas. A tradução expõe essa assimetria - ou esses “escândalos”, como diria Venuti. Traduzir é transformar e a questão que se coloca é: vamos manter o que nos é familiar (o status quo) e/ou abraçar o ‘estranho’ do (con)texto de partida? Penso que um ‘bom’ tradutor busca trabalhar de forma ética, entendendo que não há uma fórmula fixa. Por exemplo, na tradução para legendagem usamos a síntese porque, dentre outros fatores, é necessário considerar a velocidade de leitura do potencial espectador e o pequeno espaço da tela; na tradução para dublagem, a sincronia, inclusive no que se refere à abertura da boca, é fundamental; já na localização para sites, a questão da legibilidade se impõe, inclusive no sentido de uma grande facilitação da leitura; na tradução literária, por outro lado, o estilo do autor é hoje considerado um dos principais elementos a serem considerados. É necessário, ainda, pensar sobre questões como aceitabilidade, função da tradução no contexto receptor etc. Logo, não é tarefa fácil, mas o mundo globalizado depende da (e produz muita) tradução, e precisamos falar mais sobre isso.”  

E tanto é preciso falar de tradução que Giovana, em conjunto com diversos docentes da UFF, organiza um projeto para criar uma habilitação em tradução para o curso de Letras da universidade. O Labestrad está inserido no movimento, que já data alguns anos, mas ganhou notoriedade nos últimos tempos com ações como a parcerias com a Fundação da Biblioteca Nacional para ao organização de oficinas de tradução em Paraty, o aumento de oferta de disciplinas deste segmento na pós-graduação, a criação do Núcleo de Tradução e Criação, onde estão reunidos vários docentes participantes, dentre outras diversas iniciativas desenvolvidas que ganharam espaço nos últimos anos.  A professora atenta ao fato de que criar um bacharelado em tradução já não era fácil por conta da burocracia envolvida e o processo tornou-se ainda mais complicado com a pandemia, mas o projeto ainda está em curso. 

Iniciativas como esta são essenciais para que os passos sejam dados e para que o processo de tradução e o trabalho do profissional envolvido seja valorizado. Mais do que discutir sobre a falta de uma posição de prestígio para um cargo tão importante, é necessário atentar-se à jornada de trabalho desses profissionais, que muitas vezes estão submetidos à condições de inadequadas para realizar o processo. Além da falta de entendimento sobre a tarefa advinda  do senso comum, que normalmente julga que qualquer pessoa fluente em um idioma pode realizar a tradução, os tradutores trabalham sob a sombra de prazos que correspondem aos ideais capitalistas de produção – ou seja, o mais rápido possível, pois os solicitantes tem pressa. No entanto, como traduzir um livro de quatrocentas páginas em uma semana, mantendo sua qualidade, tentando transpor as questões trazidas pela obra e ainda manter-se mentalmente são? 
  E por isso, o ato de traduzir é muito mais do que passar de um idioma para o outro. Tradução é resistência e precisa ser entendida, discutida, e pensada para que os professionais envolvidos deixem de passar despercebidos e passem a configurar o espaço que merecem. 
 
Para entrar em contato com o Labestrad, basta enviar um e-mail para labestrad.ingles@gmail.com. A seleção de estudantes participantes ocorre por meio de editais e a seleção envolve textos de Estudos de Tradução fornecidos durante a inscrição e, também, a tradução de material. O Alô, Gragoatá! agradece imensamente à professora Giovana Campos e ao estudante Eduardo Bessa pelos depoimentos cedidos.

Link para mais informações sobre o Labestrad: http://www.extensao.uff.br/?q=content/labestrad-laboratório-de-estudos-da-tradução-da-uff-cópia-27-04-2016

Comentários

  1. Oi, Luiza. Achei seus parágrafos muito grandes. A leitura seria mais fluida se houvesse mais separação de parágrafos. Na frase "O Labestrad está inserido no movimento, que já data alguns anos, mas ganhou notoriedade nos últimos tempos com ações como a...", seria legal colocar números no lugar alguns anos e últimos tempos. A informação ficaria mais precisa assim. Ah, e cuidado com a estética do texto (que eu não sei se foi você que fez assim ou mudou quando foi para o site).

    Fora isso, foi um ótimo trabalho. Parabéns.

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  2. Luiza, antes de tudo gostaria de destacar o modo como você retrata (e muito bem) o campo das Letras nas suas matérias, como uma marca registrada sua. A matéria é longa, mas é tão fluída que isso não se torna um problema, além de tudo ela é muito completa, apresenta os pontos de vista da professora e coordenadora do Labestrad, do aluno, e as suas próprias considerações; o que faz com que nós, leitores, nos situemos muito bem com relação a esse campo da tradução, pois encadeia todos os detalhes específicos dessa função. Falando em função, achei incrível a citação à função artística desenvolvida pela tradução, sendo uma atividade realmente subjetiva. A matéria tem um ou outro erro de concordância, mas que parecem mais erros na digitação do que propriamente na escrita, enfim, nada relevante. Uma excelente matéria. Parabéns!

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